Caleidoscópio

Os tons de verde se sucedem intermináveis. É o verde-negro, verde-azul, verde-lilás, depois verde-marrom, verde-luz e verde-velho. Assim também, os amarelos, os rosas e os lilases. São recortes de cor quebrando a paisagem num quadro que se expõe e se esvai na janela do carro. Estou calada. O meu deslumbramento já não causa espanto aos demais, portanto não ouso manifesta-lo. Ora encho os olhos com a mistura de azul escuro e verde-preto da serra, ora com o verde-claro que se perde num amarelo suave, quase transparente do vale. A natureza me encanta, mais que isso, se fundem em mim encantamento e melancolia. Extasia-me a beleza pura, forte, viva. Paralela ao êxtase, a melancolia. Quisera reter a beleza e até mesmo este sentimento de encantamento, mas, ele é fugidio, por mais intenso que seja. A própria sucessão de belas cores e paisagens é a mais evidente prova de sua fungibilidade. Reluto em aceitar que tudo é ao mesmo tempo tão matéria e tão abstração. Amplio os sentidos. Aguço o olhar. Busco ao longe recortes de cor que permaneçam mais tempo na mira, mas, distantes, não me satisfaz a falta de nitidez dos contornos e o difuso da cor. Quando, afinal se aproximam e os tenho em todo esplendor, se desfazem em um instante, substituídos por outros, ora mais belos, ora simplesmente diferentes. Cedo a essa angústia e desvio o olhar, mas logo me descubro, outra vez, absorta na paisagem, envolvida por ela na alternância de prazer e angústia. É quase como se eu não estivesse fisicamente dentro do carro, mas, me misturasse às altas árvores e às flores de um rosa forte, ou me perdesse, minúscula, nas montanhas enormes. A viagem para mim tem um magnetismo intenso. Vivo-a de uma forma quase dolorida, pela própria intensidade.
Talvez o deslumbramento tenha nos atingido a todos, pois percebo meus companheiros tocados pela imensidão que nos cerca, principalmente nas estradas mais desertas. O céu tomado por enormes nuvens brancas iluminadas pelo sol, ora chama atenção de um, ora de outro e se traduz em expressões “aquela nuvem parece um super-herói”, “Nossa, veja como está alta aquela outra”. “Aquela árvore é enorme”.
Nas proximidades do rio, os paredões de pedra nos remetem a nossa insignificância, ao percorrermos a estradinha de terra. Cortada no meio da rocha, ela é uma cicatriz da montanha a quebrar-lhe o poderio inerte. Milhares de borboletas amarelas, de um amarelo intenso e único sentam-se no barro quase seco da beira do rio. Esvoaçam criando um contraste impressionante entre o amarelo forte e claro e os tons indefinidos, escuros do barro. Também, é o contraste entre a imobilidade, a rigidez das enormes montanhas e a vivacidade de seres tão frágeis.
Continuamos pela estradinha deserta, cheia de pedras e solavancos, contornando os paredões silenciosos e ameaçadores. Não, não há riscos, nem ameaças. São apenas temores infundados de uma mente fértil.
Aos poucos o verde ressurge e uma cidadezinha se define: casas simples, flores nas ruas de paralelepípedos, mas ainda o silêncio que o ruído do carro, implacável, quebra. As pessoas espiam nas portas, sem pudor de espiarem, afinal, suas vidas carecem de novidades, mesmo que somente a percepção de estranhos por perto. Mais adiante, uma cena que verei repetida muitas vezes em todo o percurso: cadeiras nas calçadas, grupos grandes reunidos, num ócio de fim de semana, fim de ano. Vejo-as sem alarido, prazerosas pelo simples fato de estarem juntas, entabularem conversas. Não há festas, nem grandes discursos, mas, principalmente, não há pressa. Este último ingrediente, a falta de pressa é o que mais me surpreende. Não o percebia quando morava numa cidadezinha como essa e não o tenho onde hoje vivo.
O tempo que levamos para atravessa-la não seria suficiente para que eu pudesse elaborar estes pensamentos, pois logo estamos novamente na estrada e ela fica perdida na poeira e no lusco-fusco da tarde.
Agora, os morros são suaves, o verde é intenso e recortado por escuros capões de mato. Em outros recortes, a terra há um tom acinzentado a acentuar o verde escuro dos pés de milho. Paramos o carro. Um homem forte sai da plantação, pronto para nos prestar informações. Sua beleza rústica se adapta perfeitamente àquele lugar. Está vestido com cuidado. As calças largas, a camisa clara, as botas protegendo os pés. Ele nos dá informações com presteza. Estamos longe de nosso destino. A estrada não é muito boa em frente. Se chover, teremos problemas em alguns trechos. Seria melhor não viajar à noite. Fico comovida com suas recomendações. Na sua simplicidade, ele nos reserva cuidados de parente. Vejo pelo espelho retrovisor que ele fica a nos observar enquanto o carro se distancia. Seu isolamento e sua perspectiva de vida o fazem preocupar-se por viajantes que não conhece e que se aventuram por aquele mundinho tão seu.
Escurece. Desliga-se aos poucos a tela que me traz o mundo. A cor se resume ao grafite do asfalto, aos olhos de gato devolvendo a luz dos faróis, às poucas placas de sinalização que consigo visualizar. Ainda teremos muitas horas de viagem pela frente, mas para mim ela já acabou.
Percebo, porém, que apenas começa, pois os olhos fechados repetem as cores que retrataram. Descubro nesse instante, que um novo elemento se agregou à paisagem. Nela ficou um pouco de mim e trouxe comigo um pouco de cor. Isso explica a força das sensações que a contemplação desperta. Afinal, além dos contornos e recortes, retido na paisagem está o deslumbramento e a angústia dos olhos, que numa fração de segundo a tiveram e a perderam. Por isso, na volta da viagem, olhar outra vez será um novo olhar.