Deu-se que a dona da fazenda vizinha ia pra Europa e estimava ficar por lá coisa de uns três meses. Apareceu num fim de semana em casa de meu primo Dito Santana, trazendo no colo um cachorrinho enjoado.
Era bonito, o peste: de pêlo liso, baixote, três cores, parrudinho, orelha e focinho compridos. Um tal de bigo, disse ela; inglês, ou coisa dessa, conforme depois me relatou o primo. Com nome complicado e até sobrenome, como se fosse gente, registrado no pedigri. Pedia a madama que se tomasse conta do bichinho enquanto ela e o doutor europeavam. Deixou casinha, vasilha própria com nome gravado, o de comer apropriado para o cãozinho, vitaminas e tudo mais. Até uma camisa pra se vestir o tal em caso de alguma friagem. E um ror de recomendações sobre os cuidados todos de que o bicho carecia, não tomar chuva, nada de osso; inclusive, recomendou fortemente sobre a necessidade uns passeios de tarde, para que não sentisse falta da dona etc. etc.
E lá foram pras europas da vida, ela e o marido, ficando o cachorro.
Este, nos primeiros dias, estranhou até o ar bruto da roça, acostumado que estava ao conforto do ar-condicionado do apartamento na capital. Permanecia o mais do tempo dentro de casa, enrodilhado num canto, de olho entristecido, sem jeito pra nada. As crianças tentavam atiçá-lo pras brincadeiras. Mas, que nada! O bicho não se misturava facilmente, um lordinho inglês metido a besta, era o que ele era. Olhava altivo com aquele olho murcho e molhado, levantava o focinho mostrando fastio e nem dava bola pra molecada.
Nesse tempo eu e o primo tínhamos ido a um fundão de Minas, adiante de Baependi, estritamente para buscar uma parelha de mestres paqueiros da raça legítima dos americanos. Pilhamos dois da mesma ninhada. A jeito, emparelhados em tudo: tamanho, cores, cabeça; até a ponta do rabo. Um era o outro, a menos do urro, sendo este o único meio de desapartá-los um do outro. Chorão e Rochedo, a dupla. Soberba de caçador era aquilo, um par de orelhudos combinado ao capricho.
Logo que chegados de volta, já fomos imediatos no rastro das pacas do Capão do Meio, um matão trancado, pedreira e barrocas, onde cachorro se diplomava de mestre ou então era logo descartado. Velhacas que eram as de lá. Os dois não negaram o sangue da raça, mostraram suas competências e pagaram com juros nossa viagem praquelas lonjuras mineiras. Nessa corrida jogaram duas ou três delas no ribeirão. Nem atiramos, que só fomos mesmo pra ver os cachorros trabalhar e apreciar o tropel das riscadas.
Na volta, foram tratados e presos no cercado próprio que havia no terreiro, à porta da cozinha.
E lá ficavam até a próxima caçada semanária, recebendo o trato diário de angu e modorrando com a cabeça entre as patas. Decerto que sonhando com um mundo de pacas. Eles sabiam quando era hora: bastava algum de nós passar a mão na cartucheira e vinha de lá do cercadinho aquela urraria dos cães adivinhando a iminência da caçada.
Então era que o lordinho inglês, da soleira da porta, olhava enfadado para os americanos paqueiros, já soltos no terreiro, sempre doidos pra enfrentar a mataria. Devia o baixinho nutrir um imenso desprezo por aqueles cachorros caipiras, uns ignorantes que uivavam em vez de latir. A gente via isso naquele orgulhoso e fidalgo seu jeito de olhar.
Além dos americanos, havia o Duque, manhoso e valente cão de lida de gado, que pegava justo no garrão das novilhas, sem nunca machucá-las; cuidoso, arrodeava o rebanho e não deixava nenhuma se desguaritar. Era o auxiliar mais valioso de meu primo na lida e nas andanças a cavalo pelas divisas. Ia de companheiro e guarda, como um capanga fiel, vigilante e cioso de sua obrigação. O lordinho inglês, contudo, nem mesmo com este se dava. Cheirava-o e logo se afastava displicente. Duque, por conta dos graves avisos de meu primo para que não reagisse – o que seria um desastre, posto que Duque era cão de brutezas – rosnava incomodado, mas tolerava aquele baixote perfumado a cheirá-lo; tremia, e continha seu ímpeto de cachorro brabo, ignorando a custo aquele cachorrinho abusado.
Com o passar dos dias, o cachorrinho foi se acomodando ao ritmo da casa. Apossava-se dos cantos que tinha por mais aconchegantes, subia no sofá da sala, fuçava embaixo de cama, embarafustava pelos quartos e pela cozinha como se de tudo dono fosse. Parecia nem se lembrar mais da vida afrescalhada de antes. Atrevia-se já a ir ao terreiro e a ficar em pé na cerca, para latir desafiante para aqueles paqueiros estúpidos. Ia se acostumando, explorava curioso as cercanias da casa, e já havia até pego no lombo uns tantos carrapatos.
Pra tirar a cisma, num dia de caçada, meu primo o levou no colo, em cima do cavalo. Ele foi sossegado. Habituado ao colo da madama e a banco de carro, aquilo para ele era mais um passeio.
Na beira do mato, madrugadinha, soltamos os americanos. Partiram de focinho no chão, fungando, e logo bateram num rastro. Um urro curto, outro, e mais outro. A paca andava por perto. O cachorrinho, ao nosso pé, inda que meio medroso, se impacientava. Gania tenso a cada rastro dado pelos americanos, abanava o nervoso rabinho. Às tantas, ouvimos o urro engasgado de Rochedo: era o levante da paca. Aquilo ressoou com a urgência de um chamado atávico. O lordinho retesou-se nas patas, estremeceu, e não se conteve: como que atendesse a uma ordem misteriosa enveredou feito um corisco mato adentro. E sumiu no escurão do carreiro. “E essa agora?” – disse meu primo, veramente preocupado – “Que conta vou dar desse bicho à madama! Isso vai se perder e nunca mais volta. Tô lascado!”
Esperamos mais de hora. Volta e meia a gente afinava o ouvido e percebia lá longe os urros dos dois americanos. A paca por certo havia dobrado a encosta. Cachorrame espalhado. E nada do baixinho.
De repente se ouviu um urro grosso, de nenhum conhecido. Apontava para o nosso lado a corrida. Aprontamos, pois fosse quem fosse, vinha a paca na frente. O dedo coçava o gatilho da cartucheira. Não deu nem um minuto e notamos a bulha familiar da carreira da paca. Vinha num desabalo, firmamos as armas na cara. Ela estancou no carreiro quando deu com a gente. O primo pipocou o tiro certeiro. Ela ainda mijava sua morte, quando surge o baixinho afobado na trilha. Endoidecido, focinho esticado pra cima, tentava pular na paca que meu primo sustentava pela pata no ar.
O tal do bigo era um caçador nato, de faro apurado, persistente e esperto, e nem dava pra acreditar que um baixote daqueles urrasse tão macho! Todo o instinto reprimido, de que nem ele tinha notícia, rebrotava assim de uma vez, sem que ninguém segurasse.
E, por isso, foi rebatizado ali mesmo na beira do mato, dessa vez com nome adequado: de lorde inglês, com nome bonito, para Lampião.
Daí em diante não houve dia em que não o levássemos para as caçadas. Em pouco tempo, adquiria resistência e afinava o jeito de jagunço paqueiro: orelha rasgada, focinho lanhado de paus e arranha-gato, carrapatos e bernes pelo courame; enfrentava chuva e frio a modo que tivesse nascido praquilo. Teve até nambiuvu, mas escapou inteiro e mais reforçado, curado a poder de coisa do mato. Se enfiava confiante no brejo, se rolava na bosta de vaca, ao modo dos americanos, com quem de vez se ajuntara.
A gente já havia até se esquecido da dona madama. Mas, corrido o tempo aprazado, ela apareceu pra buscar seu cachorrinho. Ele, solto pelo terreiro, correu alegrinho ao ver sua dona descendo elegante do carro. Ela, porém, não reconhecendo naquele bicho sujo e fedido o seu cachorrinho delicado e cheiroso, espaventou-o dali mesmo da porta carro.
E entrou na casa já procurando por seu queridinho, chamando-o pelo seu esquecido nome inglês. Foi um silêncio danado. Minha prima de olho baixo, sem saber o que dizer; meu primo calado, no imprevisto tentava catar as palavras no fundo do cérebro desorganizado. A madama foi se aquietando, desconfiada, o lábio tremendo: “Ele… ele… morreu?…” e já ia prorrompendo no choro; o marido, expressão condoída, apoiava, e se preparava para dar-lhe o conforto moral exigido ante a possível tragédia…
Meu primo, vendo aquilo, desentalou da garganta umas poucas palavras:
-Morreu não, senhora. Seu cachorro tá aí no seu pé… – e apontou desenxabido para Lampião, que lambia sem cerimônia seus bernes recém-espremidos.
Ela não acreditando, o olho arregalado. Aquele jagunço não podia ser o seu cachorrinho tão lindo!
-O que o senhor fez com o meu cachorro?! – explodiu em lágrimas.
Pra encurtar, ela não quis mais saber do cachorro. Deixou-o lá de vez, estragou o cachorro, então fique com ele, meu marido que me compre outro!
E Lampião, dado como irrecuperável, ficou… feliz e paqueiro…