Parece-lhe normal uma capivara entrar numa página do meu texto? Até seria, se eu reunisse conhecimento, ânimo e talento para escrever uma fábula, e isso eu não tenho. Apenas esse computador e papel para impressão, elementos insuficientes para a produção de um texto. Por isso, meu caro leitor, perdoe-me o que lhe parecer mau, assim como esse modo de tratar o animal sem nenhum desvelo, como se fosse um bicho qualquer debaixo do céu.
A bem da verdade, devo confessar que não tenho nenhuma simpatia pelas capivaras, e todas as vezes que estive no Pantanal neguei-me a fotografá-las. Ora, são tantas que chegam a incomodar! Sem contar que temos o pedantismo de querer mostrar aos amigos, principalmente aos que residem fora, um animal mais nobre como o tamanduá bandeira com aquela calda magnífica e aquele andar elegante… Ou quem sabe, com um pouco mais de sorte, uma jaguatirica toda imponente, lançando aquele olhar felino, cúmplice de si mesma, como que se bastasse em sua individualidade.
E quem não deseja ver uma sucuri toda enrolada, pronta para dar o golpe, só pelo gosto de ficar perplexa? Eu já vi, e fiquei estagnada ante aquela insanidade desafiadora. Eu ali, toda racional, toda lúcida, não tive outra iniciativa que não fosse a de correr.
À vontade mesmo, fiquei diante do bicho preguiça, quando o encontrei deitado sobre um galho verde, todo esticado, indolente, sentindo as vibrações do ar, dentro de um mundo governado pela magia onde o tempo não conta, nem determina nada. Senti profundamente a minha ignorância ao vê-la caminhar lentamente sobre aquele galho, chupando algumas folhas, vivendo cada momento além do limite. Também foi fantástico ver as lontras e ariranhas relaxadas à beira dos corixos, a ouvir o apito dos trens que não existe.
E as aves? Eu ficaria o dia todo para descrevê-las em suas cores tão diversas. Você já viu garças cor de rosa? E os tuiuiús com aqueles ninhos enormes que dá vontade de se aconchegar dentro? Mas, o que eu gosto mesmo é das corujas. Devo ter algum parentesco com elas. Que outra explicação há para aquela troca de olhar tão penetrante?
Penso que, a essa altura, o leitor mais impaciente, deve estar se perguntando: e a capivara? Pois é, todo esse extenso preâmbulo é pra dizer que apareceu uma capivara aqui em casa. Chegou por volta da 1:00 da manhã, quando o silêncio da rua é quase total. Não fosse o latido dos cães da vizinhança ela passaria despercebida.
Saí na sacada para verificar o que estava acontecendo. De início, pensei ser ladrão. É só o que a gente ouve atualmente. Depois avistei aquele bicho esquisito encostando-se no meu portão… tive uma indefinível sensação que aquilo não estava acontecendo, que era só efeito do sono… abri e fechei algumas vezes os olhos na tentativa de que ela desaparecesse, mas a distinta continuava ali ignorando os meus assobios e os pequenos objetos que atirei dando-lhe a entender que alguém a observava e a convidava a se retirar. Sem outra opção, liguei para o bombeiro. Do outro lado uma voz masculina aconselha-me a abrir o portão e acomodar a capivara em meu quintal até que o dia amanheça. Ora, era só o que faltava! Eu? Não vou não! Respondi de pronto. Imagine eu, lá pelas tantas da madrugada, acuando uma capivara?
Desliguei o telefone e voltei à sacada. Avistei a intrusa que lá se ia em direção a um terreno baldio. Tive uma sensação de remorso. Uma capivara tentando uma aventura urbana em seu destino banal, todavia poderia ser impedida pelos cães antes de concluir a façanha – e do alto da minha sacada, despedi-me dela com um olhar, talvez, de pena. Por que não nascera tamanduá a pobre?