Quando meus filhos eram pequenos, tínhamos várias ampulhetas espalhadas pela casa. Confesso aqui, nunca gostei delas, me davam aflição desde pequena. E desde pequena tive um sonho: gostaria de ter para mim, em vez de ampulheta, uma grande concha marinha. Para ouvir, à noite e sentada na varanda, o mar que ela guarda, cuidadosamente enxuta, em seu bojo entre pérola e nácar.
Mas voltemos à ampulheta: tínhamos muitas. Umas marcavam o tempo da escovação dos dentes (cinco minutos?), outras povoavam nossas estantes de livros, a areia agarrada ao fundo, jamais gostei de virar qualquer uma delas a não ser quando acompanhada da ordem: e agora escove os dentes até que a areia venha toda para baixo…
Sei lá por que escrevo isso hoje… talvez porque os filhos tenham crescido, talvez porque um outro tenha nascido e hoje tenha dez anos, talvez porque eu nunca tenha dado a este último filho uma ampulheta, ou porque hoje, em nossa casa, ela nunca tenha pousado nas estantes de livros como se fora uma borboleta.
Mas ainda continuo querendo a grande concha marinha para ouvir o mar à noite, da varanda…
Daí que ampulheta e concha se embaralharam dentro de mim e viraram uma cornucópia de vida, esta grande concha de onde fluem todas as coisas, laranjas e moedas, pássaros e trigo, uva e flores. Eis o mundo, Deméter, à nossa porta.
Tento me concentrar, pensar em outras coisas, eu que sou devedora de uma ampulheta para meu filho menor… E me vem à cabeça que a ampulheta é um símbolo do tempo inexorável, areia fina que escorre e se esvai e indica que tudo cessa, passa e acaba. Pronto: não quero mais dá-la ao meu filho de dez anos, esta espécie de condenação, esta medida dos prazos do viver.
A proximidade dos cinqüenta anos nos põe sérios e compenetrados no ato de viver. Embora saibamos que a morte sopra devagar por sobre os nossos ombros, damos mais valor à Vida e ao que ela representa. Somos mais sérios sem que o queiramos. Fazer cinqüenta anos nos põe mais próximos de todas as coisas, as lembranças da infância e o medo de partir sem que, ao menos, tenhamos terminado a parte mais difícil da jornada: somar, ver onde falhamos e o que queremos colocar em ordem, acrescentar a nós mesmos o que, em algum momento, perdemos no caminho. Valorizar cada sentimento e cada coisa, desde o vagalume da noite até o besouro do dia e sua intolerável paciência de asas curtas e grossa carapaça.
Por isso ouço Haendel e sua Ode ao Dia de Santa Cecília, por isso lembro a você a maravilha que é Mozart, por isso, às vezes (ou sempre?) encho os meus olhos de água. Porque me nego à rapidez que a areia tem quando a ampulheta é virada, porque sei que sou esta folha ao vento, todas as coisas que um dia fui, sou e serei.
Coisas tão raras me cercam e me sustentam, sou este bípede com medo e com memória. E, assim de repente, quero aquela concha que nunca tive, música que não sei ouvir. Quero tudo porque não me acanho de dizer que sofro, que preciso, que não deixo nada sem discutir para trás.
Aqui, brincando com as palavras feito um menino e sua pipa, dou mais linha ao fio da Vida, desejo coisas impossíveis, sonho meu destino. E porque sonho, ainda quero a grande concha marinha que um dia desejei na infância. Talvez como um símbolo de teimosia, talvez como uma metáfora de que resisto à acomodação e à sensação de “dever cumprido” a que me recuso em nome da existência de que sou dona e que, portanto, me dá o direito de recomeçar todos os dias sem medo.
Guardo em mim, como guarda aquela concha que um dia terei, a música do estar-no-mundo. Ainda quero ouvi-la, porque ainda não terminei a minha própria história de viver. Ainda espero, ainda me debato, ainda sou este besouro que, embora tenha curtas asas, inaugura um vôo sem sustos e vai pousar, teimosamente, em outro canto do quintal, como se fosse isso um nascer e renascer.