Atrás do Nó da Gravata, Bem Perto do Coração

Já se pode sentir, assim, no fim da tarde, este pulsar do outono antes do tempo. Sentiu? Imaginei que eram só a minha pele e minha imaginação que sentiam. Mas um menino ­ e que sábios é que são os meninos! – , olhando para mim me anunciou: você está sentindo, mãe? Acho que o verão está indo embora, não é?
Meninos são sábios.
Meninos pressentem no ar as mudanças de clima, de estações. Pena que os meninos crescem, viram homens e , muitas vezes, simulam e mentem. No entanto, nem todos os homens são assim. Há os que abotoando o paletó, pela manhã, atrás do nó da gravata, guardam no peito o menino que são e, depois, retomam-no quando voltam para casa. Só assim, descubro, é que se pode fazer para outros meninos aviões de papel, pipas coloridas e rabiolas, desembaraçar dezenas de metros de fios de linha sem perder a calma, sem recriminar ou ferir.
Então, assim, descubro por que é sempre primavera na casa de um homem menino: é que ele não tem espinhos…
Mas, por que devaneio eu?
Sei lá. Tomou-me esta emoção fininha hoje: um outono prestes a explodir , guardado nas folhas e raízes, nos troncos e nas flores. Um bom outono se veste de marrons e amarelos e verdes muito escuros. No outono,aprendo, é que a terra começa a tramar os frutos sumarentos.
Casulos somem, borboletas se apagam, esmaecem as cores o céu e seus fiapos de nuvens. O outono parece ser triste. Mas não é…
No outono os pratos ficam fumegantes, a cozinha recende a cheiros antigos, mexer panelas, criar receitas, bordar em frente à tevê ou ler um livro de poemas. Dizê-los na sala, na frente de todos, quase que soluçando, as mãos tremendo.Ninguém diz, mas sabemos todos que no jardim há um imenso sapo amarelo… sapo de Voltaire: “Perguntai a um sapo o que é a Beleza..?”
Outono é tempo de dividir espaços, tomar chá em xícaras grandes, jogar xadrez e pensar. Tempo de voltar para casa com prazer e dividir a mesa com quem se ama, tempo de falar baixo , de trocar idéias, de acariciar cabelos, de rir pelo prazer da companhia, assustados porque estamos vivos e nossos olham brilham alegres. De preferência, ouvindo música. No outono, deixo de ouvir Vivaldi, que é descaradamente inspirado na Primavera e no Verão. No outono e no inverno, ouço Bach e suas cantatas, sobretudo a Magnificat. E Pergolesi. Gosto de ser surpreendida por Mahler e seu Scherzo da Sinfonia n.5.
Antecipo, pois, em pleno Verão, o outono que se aproxima: necessário, parte do ciclo de todas as coisas, desde um lêmure até um homem. Depois dele, ou preparado por ele, o Inverno é puro recolhimento. Inverno é tempo de medir paredes interiores,fazer as contas do que perdemos ou ganhamos, de computar dias de um longo ciclo, de saber que quando o sol sair é tempo de plantar, de revolver a terra, de sentir-lhe o cheiro adocicado e quente, o perfume que só ela tem, especial e eterno. O outono é tempo de sonho.
E, depois, repetir um gesto antigo que é o de nossos antepassados: atirar as sementes ao chão para que elas cresçam, brotem, floresçam e produzam os outros grãos dos quais nos serviremos.
Tudo é o ciclo dos dias. Tudo tem início e fim.
Nós é que guardamos na memória, a eterna Primavera do que não plantamos, nem colhemos. Aturdidos, não nos demos conta que era tempo da Sagração da Primavera. E que é preciso cuidar da Primavera em pleno inverno.
Mas, o que digo eu?
Nem começou o outono.
O Verão não terminou.
E olharei seus olhos de menino e oferecerei o som do violino que não se guarda em caixa, que não se esconde em gaveta, mas que se leva, quando se queira, atrás do nó da gravata, bem perto do coração.