Quase Natal

Diferente é o ar que se respira na cidade.
Apesar da chuva, do vento cortante, do frio que penetra nas camadas de roupa, dos guarda-chuvas que se voltam ao contrário, do trânsito caótico, dos pedintes postados em esquinas estratégicas, mãos sujas, estendidas à caridade, uma esmolinha, por favor, nos olhos em acusação constante, o estado devia cuidar desta gente, que diabo, eu pago os meus impostos, não se pode andar à vontade nas ruas, apesar de tudo isto o natal aproxima-se e é altura de ser bom, de estar de bem com o universo inteiro, de enviar coloridos cartões de bom natal / merry christmas – feliz ano novo / happy new year, assim, em dois idiomas no mínimo, à família dos casamentos e funerais, espalhada por esse mundo fora, parecemos um bando de ciganos, anda sempre alguém em viagem, e aos amigos próximos e distantes a quem nem um telefonema se faz durante o ano inteiro, mas é uma forma de a gente de dizer que se lembra, que gostamos deles, e os cartões são tão bonitos, não são? caríssimos, mas é uma vez por ano.
Canções cristalinas brotam dos altifalantes, puras como a neve que mais uma vez não vai cair, é tão raro nevar aqui, na cidade junto ao mar, cascatas de música descendo do alto das montras decoradas a rigor, já viste a fortuna que fazem os decoradores de montras nesta altura do ano? vitrinistas, não é ? presentes para todos os gostos e quase todas as bolsas, tentação permanente que vai engrossar o limite excedido dos cartões de crédito.
Mas é ao fim da tarde, quando os bancos, as companhias de seguros, os escritórios encerram as portas e aquela gente com algum dinheiro livre abandona às mulheres de limpeza os computadores adormecidos, que a baixa mais se agita, turbilhão de gente, vista daqui de cima mais parece um formigueiro obstinado, em movimentos apressados, olhares de esguelha comparando preços, acenos trocados de passeios opostos nas ruas unidas por nossas senhoras, são josés, meninos jesus, reis magos, sinos e anjos misturados com folhas de azevinho e pinheiros nórdicos, todos feitos com milhares de lâmpadas coloridas que lá do alto tornam mais brilhantes os olhos das crianças indecisas entre o pai natal de trenó e renas e o menino jesus rubicundo e loiro.
São duas horas, no máximo três, de intensa actividade, um entra e sai permanente nos estabelecimentos comerciais, caixas registadoras tilintando, não sei se faça presépio se árvore de natal, se calhar vou fazer as duas coisas, os miúdos gostam mais da árvore mas o presépio é mais tradicional e, este ano, os meus pais vão passar a consoada lá a casa, até que pelas sete da tarde as filas para os transportes aumentam, serpenteiam, vou ali num instante ao santeiro, os semáforos desesperam, amarelo, vermelho, verde para os peões, atravessa agora, rápido, verde de novo para os carros, amarelo, vermelho, dás-me boleia para casa? vou indo para o carro, espero lá por ti, automóveis, jeeps, motas, um cortejo de buzinas, não demorei muito, pois não? a chuva que não desiste, o vento que teima em soprar forte, tu acreditas que as imagens eram todas made in taiwan?
Correm-se as grades de segurança das montras, isto agora é uma gatunagem, nem os alarmes os assustam e a polícia parece que nem se quer incomodar, fecham-se as portas dos estabelecimentos, cada ano que passa é pior, não se vende nada, a associação dos comerciantes tem que ter mão nisto, vai tudo para os shoppings, centro comerciais ou o que lhes queiram chamar, e tudo mais caro, mas o que é que você quer? abrem uns atrás dos outros, nascem como cogumelos, eu ainda tentei alugar lá uma loja das médias mas faltou-me a coragem e agora estou arrependido de não o ter feito, não sei como conseguem vender, mas o certo é que vendem e bem, bons tempos quando estávamos abertos até ás dez da noite, mesmo na véspera de natal, bons tempos, os altifalantes adormecem, rua a rua a iluminação feérica apaga-se, que a energia está pela hora da morte e este ano o município não contribuiu nem com um tostão, você sabia? então até amanhã, boa noite, até amanhã.
A baixa vai ficando deserta. Bandos de pombas descansam, por fim, nos ombros ilustres das graníticas estátuas, nas varandas neogóticas dos gabinetes dos excelentíssimos senhores presidentes dos conselhos de administração, nos raquíticos ramos das árvores recobertas de monóxido de carbono.
Aos poucos, uma outra população vai chegando. Elas, que já se chamaram maria do céu, maria das virtudes e agora dão pelo nome de yvette ou maureen, conforme a preferência dos clientes, estacionam os tacões altíssimos sob os candeeiros de iluminação pública, as coxas nuas por entre os impermeáveis brilhantes, seguidas de perto por figuras sinistras, untuosas, que cronometram tempos nos abrigos das paragens de autocarros.
Junto à praça de táxis, o homem do quiosque, empilhadas as revistas e os jornais a devolver, pendurado o último taipal, acendeu pela enésima vez a ruína do cigarro.
As nossas senhoras e os são josés, os meninos jesus e os reis magos, os sinos e anjos misturados com folhas de azevinho e pinheiros nórdicos, todos feitos com milhares de lâmpadas coloridas, agora apagadas, tremem fustigados pelo vento frio que reboca a tempestade.
É quase natal…