Os Braços de Morfeu

A velha rotina de acordar com a nesga de sol batendo em cheio no rosto ainda haveria de desaparecer. O que custava fazer a barra da cortina, subir numa escada e pendurar um por um os rodízios todos? Ahhhhh… preguiça desgraçada a da terça! Se pusesse a cortina, pelo menos nunca mais acordaria com aquela luz débil no rosto…
Mau humor. Até o pássaro preto pagava a pena: “Bicho burro, preso nessa gaiola e ainda canta? Tonto…” Osvaldo era outro que andava na lista negra, sempre dando trabalho com aquela mania de caçar passarinho. Um dia ia tomar vergonha na cara, fazer voz de dedo-duro no telefone e avisar a Sociedade Protetora dos Animais. Aí sim ele ia ver uma coisa, ia tomar uma multa e talvez sobrasse até cadeia. Desgraçado!
Odiosa e ainda dormitando, num gesto mais que automático, apertou o botão e desativou o insistente despertador. Virou-se e, de novo, cerrou os olhos numa vontade intrínseca de imitar a cegueira edipiana.
Talvez por ter sido obrigada a se desgarrar das saias da mãe há tanto tempo ­ tanto tempo que dela nem mais guardava as feições ­ , Maria Anésia tornou-se, aos poucos, dotada de uma amargura esmagadora, capaz de brincar de fantoche em plena hora da misericórdia.
Cinco minutos mais tarde, outro tapa calou o despertador pela segunda vez: hora de levantar e nada de choro! Saltou da cama num repente, de cabelos desgrenhados, boca meio saburrosa e cara amassada. Invejou o sono do marido, aquele infeliz que só sabia dormir, comer, trabalhar e rezar.
Regulou a temperatura da água e lá ficou até as pontas dos dedos iniciarem o processo do pseudo-envelhecimento que tanto a encantava na infância e que agora, na era balzaquiana, provocava quase terror. Lavou os cabelos como se a própria alma alcançasse, numa sofreguidão de fazer dó. Passou o condicionador, usou um tico dos sais comprados em duas prestações e terminou o ritual se enrolando numa enorme toalha felpuda do enxoval que jamais cessaria.
O espelho embaçado mal traduzia a nudez verbo-nominal, mas mesmo assim Maria Anésia enxergava com clareza a mulher intensa, bonita e afrodisíaca que imperava do outro lado. Já não desejava tanto a cegueira.
Enrolou os cabelos molhados na toalha menor, escovou os dentes, passou o hidratante e vestiu o roupão de cetim de estampa miúda. O mau humor, devagarinho, dava lugar à esperança de um dia agradável.
Saiu do banheiro e, na porta do quarto, parou para observar com ternura aquele homem que dormia o sono dos deuses. Mais que ternura: teve ânsia de apertá-lo nos braços, de esmagá-lo de tanta febre e volúpia, de beijá-lo inesquecivelmente e repetir, repetir e repetir que aquele era o homem dela, só dela, dela e de mais ninguém.
Mas Osvaldo dormia e a hora passava, precisava acordar as crianças. Um átimo e tudo tornou a ficar cinza, impotente para volver do sonho à realidade. Calçou as velhas chinelas de saltinho confortável, vestiu o primeiro conjunto de calça e blusa que encontrou pela frente, passou um pente nos cabelos e chamou:
__ Vinícius, acorda! É hora de levantar e ir pra escola.
O menino resmungou, fez pouco caso e se cobriu com o travesseiro. Impaciente, Maria Anésia logo tratou de carregá-lo para o banheiro:
__ Faz logo o seu xixi e escova os dentes. Vamos, está atrasado!
E enquanto entrava no outro quarto para despertar também a filha, sentiu sobre as costas alguma coisa que nem soube nominar, era como se dissesse: “está vendo suas orelhas nas orelhas do seu filho?” Teimoso e desobediente, além de preguiçoso e mau humorado, tudo dela estava nele.
A garotinha não. Era mais o gênio do pai. Delicada, tranqüila, sorridente com a vida que lhe determinavam e que seguia quase sem contestar. À beira da cama cor-de-rosa, Maria Anésia tomou-se de ódio, lançou olhos densos para a pequena psiquê de nove anos, sangue do próprio sangue que nem por isso a tornava mais próxima.
Era verdade que não nutria por Clara o mesmo afeto que por Vinícius. Projetava-se no menino e enxergava na filha a velha rival. Como podia, ao mesmo tempo, travestir-se de Afrodite e de Jocasta?
__ Levanta, filha, anda logo que está quase na hora.
A menina abriu os olhinhos e, num sorriso, desmoronou a mãe:
__ Bom dia, mãezinha, já tô levantando, tá?!
Tão delicada e tão sensível que Maria Anésia teve remorsos de pensar o que pensou, de invejar a personalidade e, talvez, ainda que ocultasse no mais profundo âmago, a juventude da filha.
__ Bom dia, querida. Escove os dentes e vista o uniforme. Depois tome o café.
E enquanto as crianças se vestiam e se arrumavam, Maria Anésia pôs a mesa do café.
Deu-lhes de comer, ajeitou-lhes os cabelos e as roupas, conferiu os cadernos e, finalmente, entregou os pequenos na porta do colégio.
Voltou sem pressa, com o pensamento vago, perdido num canto qualquer da memória. Lá estavam vitórias e fracassos, encantos e decepções, alegrias e tristezas, saúde e doenças… inúmeras antíteses num mesmo povoado.
Abriu o portão da frente e o vira-latas recentemente adotado correu num enorme entusiasmo para dar bom-dia.
__ Oi, Mautus, você já levantou também, menino?
Seguiu pelo caminho de calçada e grama com as pernas arranhadas pelo animal. Entrou na cozinha. O cheiro do café no ar, as migalhas de pão espalhadas na mesa e no piso, a pia repleta da louça do jantar ainda, o tic-tac insistente do relógio, os restos de leite com chocolate nas xícaras, as facas lambuzadas de manteiga e requeijão… Ah, escrava!
Vestiu o avental e se pôs a limpar, a lavar, a temperar a carne para o almoço. Maria Anésia era o seu nome. E como o detestava! E então não era criança e não ouvia, dia após dia, dos irmãos, dos vizinhos e dos amigos, que tinha mesmo a cara daquela salada de batatas, cenouras, ovos e tudo quanto era tranqueira? Maria Anésia. Ódio! Por que não era Maria tão-somente? Por isso é que dera aos filhos nomes simples e bonitos…
A vingança era que o marido tinha um tão ruim quanto o dela. Ah, que engraçado o sogro chamando bem alto lá da rua: “OsvaRRRRRRRdooooooo!” Ela bem era capaz de ver o sangue de Osvaldo subindo, o rosto avermelhando, chispas de raiva escondidas debaixo de um sorriso plácido. Era nervoso, sim, mas disfarçava… por isso mesmo um candidato em potencial para um infarto, um derrame. E já imaginava o marido capengando, torto numa cadeira de rodas, jogado numa cama. Antes morresse! Vivia com tamanha intensidade a situação que às vezes nem sabia, de fato, a distinção entre o real e o imaginário.
Lavada a louça e temperadas as bistequinhas de porco, subiu para acordar o “dorminhoco do OsvaRRRRdo”. Riu-se da pilhéria que acabara de fazer, ainda que não se considerasse lá muito cômica.
Ao contrário do habitual, ele já havia levantado e se barbeava. De vez em quando o silêncio era cortado por um nojento pigarro que fazia o estômago de Maria Anésia embrulhar.
__ Por favor, não faz esse escândalo…
Osvaldo, despudoradamente nu na frente da pia, com o rosto cheio de creme branco, a gilete numa das mãos e o pincel na outra, virou-se sem entender:
__ Que escândalo?
Um suspiro seguido do pensamento inevitável: “… mas é um desclassificado mesmo…”
__ Nada. Esquece.
Ela o observou. As costas largas, o tórax definido, as pernas grossas, os braços fortes, os pêlos negros bem dispostos, o furinho excitante no queixo, os pés descalços tocando o chão…
__ Ah, meu amor!
Os pés tocando o chão, as unhas cortadas e lixadas, a relva de cabelos despenteados e cheirosinhos, os olhos nus… os olhos nus… os olhos nus!
__ Ah, meu amor!
Os olhos, a barba cerrada, a orelha perfeita, a pele macia, o peito aberto, os mamilos róseos e cheios de função. Lembrou a noite em que ele, filosófico, argumentou: “Você já pensou no por quê de o homem ter mamilo também se não amamenta?”
Maria Anésia sorriu. Seu homem era tão inocente!
Abraçou-o com ternura misturada à excitação, sentiu-se apertada num corpo gigante. Lábios quentes, carnudos, intensos, que se abrem e se fecham e se envolvem…
__ Ah, meu amorzinho!
E, além dos lábios, Maria Anésia buscou o sexo. Abraçou-se com força ao marido, como se assim pudesse chegar à unidade plena, roçou-o, provocou-o, chamou-o. Fez todos os caprichos de fêmea no cio, perfumou-se, despiu-se, insinuou-se. Tentou música, incenso, espelho, cama redonda, chão, grama, banheira…
… mas Osvaldo negou.
Negou e renegou e nem quis saber de conversa ou de ajuda. Frustrou-se e se enterrou de vez nos trilhos do afastamento.
Frustrou-se também Maria Anésia. Amargou, cansada da escravidão do lava-passa-cozinha-cose, do peso de viver com um marido-irmão. Exausta, sobretudo, de ouvir:
__ Levanta as mãos pro céu, menina, que o seu marido é o homem ‘mais bom’ que já vi no mundo.
Ela sorria de lado, disfarçava o pudor de Osvaldo e nem sabia muito bem por que fazia isso e pensava, lá com seus botões, que seria tão melhor se o nome dele estivesse pendurado no SPC, se o banco não fornecesse mais talões de cheque e se passassem apuros para pôr comida em casa…
__ Eu sei, Osvaldo é um homem muito bom…
Mas não bom o suficiente para fazê-la feliz. Maria Anésia vivia no curso da ampulheta, analisando grão por grão, até que um dia, de tanto morrer aos pouquinhos, acabaria enterrada de verdade. Era a sina, a profecia de um oráculo tiresiano escondido em qualquer lugar dela mesma.
Osvaldo era um egoísta que não a merecia. Que outra mulher agüentaria sete anos de jejum? Bem avisara a terapeuta em certa ocasião: “Arrume um amante, Maria Anésia”. O que antes considerou um disparate, nos últimos tempos martelava-lhe a cabeça com tal intensidade que já se imaginava em furtivas saídas.
Não, não faria isso jamais! Não valia a pena sujar o próprio caráter assim por uma coisinha de nada. Como haveria de renegar o tabu que a acompanhava desde a infância? Como, então, reuniria forças para afirmar categoricamente que a mãe era uma vagabunda que abandonou a família para fugir com outro homem?
Odiava a mãe mais do que nunca. Turvara-lhe a infância e agora fazia o mesmo com a vida adulta. Maria Anésia era um porco-espinho que se espetava na própria defesa. Ora clamando pela segurança do lar, ora desejando os riscos da revolta, amargurava-se cada vez mais, dia após dia.
Esgotada de tanto maquinar, largou-se na poltrona da sala com a vassoura na mão. Reduzida, assim se sentia cada vez que Osvaldo aparecia banhado, os sapatos reluzentes, de gravata e colarinho, pronto para o trabalho:
__ Até logo, querida. Ah! Ia me esquecendo… talvez não venha para o almoço, tenho uma reunião no começo da tarde e preciso preparar a pauta. Fico lá no centro mesmo, como nalgum restaurante, não se preocupe.
Maria Anésia, enxugando o suor da testa no avental, teve gana de soltar um belo e incrível palavrão:
__ Vá tomar…
__ Onde está minha pasta, querida?
__ No seu…
__ Ah! Está aqui! O que você disse, meu bem?
__ O quê? Eu?! Ãhnn… aaahhhhh! Estava desejando um bom trabalho…
Sorriu amarelo. Dentro do peito explodiram milhares de outros palavrões.
Osvaldo pegou a chave do carro e se foi. Ela ficou na porta, parada, o corpo descansando na vassoura, os dedos dos pés tremendo de ódio dentro da chinelinha comprada na liquidação.
__ Me paga, desgraçado.
Diabólica, viu-se cheia de si num vestido de festa, as pernas convidativas em meias de seda, o perfume favorito dando piruetas no ar, o pescoço ornado, os cabelos semi-presos e propositadamente desarranjados e o melhor de tudo: os olhos e seus contornos insinuantes, plagiando a cigana oblíqua e dissimulada do grande escritor.
Mas era pouco e, pouco depois, Maria Anésia, nas raias do sonho, fez-se acompanhar. Um rapagão alto, bem mais novo que ela, musculoso, de olhos redondos e verdes, bronzeado, dono de mãos limpas, grandes e muito inconvenientes, conduzia-a num tango piegas sob o olhar de espanto do marido.
__ Ah, desgraçado!
Perto de Osvaldo, levantava as pernas realçadas pelas meias, provocante, tentando a todo custo tocar-lhe o queixo com o sapato preto de verniz. Erguia o pescoço, imperativa, dona de si mesma, poderosa:
__ Gostou, bebê?
E o pobre do Osvaldo, boquiaberto, livrando da mesa uma toalha grande o suficiente para acobertar, além do corpo da esposa, a enorme vergonha que sentia. Mas Maria Anésia se livrava dos panos e do rótulo de boazinha e passava a diaba, o sexo quente, tomando forças, os risos frenéticos um tanto estridentes atravessando paredes, a chama da vulgaridade tomando vez a cada peça de roupa que tirava. Acabaram nus, ela e o rapagão, na frente de todos, no meio do salão, sob a flácida observação de Osvaldo.
__ Gostou, mon chéri?
Ainda não bastava. De um lugar qualquer surgiu uma rosa vermelha, oferecida, que ela, graciosamente, prendeu no canto da boca. Nua com uma rosa nos lábios, rodopiando ao som do silêncio, beijou o rapagão escultural, também nu.
Excitados os dois, deitaram no chão. As pétalas rubras passeavam pelo corpo dela guiadas pela boca dele. Preliminares cobiçadas pelos que ali insistiam em permanecer. Osvaldo arrasado pelos gritinhos de Maria Anésia.
__ Pra você aprender como é que faz, querido. Tá gostando de ver?
E quanto mais o marido se encolhia, mais ela se exibia em malabarismos, posições, caretas, gemidos, olhares e gozos. Nunca antes havia trepado com tanta qualidade, pensava sorrindo pervertida para o público, muito satisfeita com a performance.
Olhou para a mesa e não viu mais o marido…
Voltou à crua realidade tomada de susto. O corpo quente do imaginário dando lugar ao relógio impiedoso: hora de começar o almoço. Ah, céus!
__ Eu te odeio, Osvaldo.
Acendeu o fogo e, com as cebolas que a fizeram chorar, fritou o esposo. Num gesto de escárnio, temperou-o com pimenta e sal. Dourou dos dois lados, incrementou com um pouco de orégano e, risonha, despejou:
__ Salta aí um “Picadinho à la Osvarrrrrrdo”!
Delícia das delícias ver aquele retalho de gente contorcida! Sádica ao extremo, pôde até ver os olhinhos dele piscando de dor lá dentro da panela.
__ Se você não me “come”, então eu como você, viu?
E assim seguiu na manhã de fúria, espetando o marido com o garfo, fazendo dele um ratinho preso pelo rabo, varrendo-o para debaixo do tapete, sempre insultando-o e reduzindo-o à insignificância.
Por fim, pôs a mesa e buscou as crianças. Almoçou com elas, depois lavou, enxugou e guardou a louça, limpou a cozinha e o fogão, deu de comer ao cachorro, tirou o pó dos móveis, esfregou umas mudas de roupa e deixou outras de molho, ajudou os pequenos com o dever de casa, deixou-os brincar no vizinho, chamou-os de volta, banhou-os, liberou a tevê e o vídeo-game e se banhou também. Exausta.
O ódio foi desaparecendo com a sensação do dever cumprido: a casa limpa e as crianças em ordem, as contas pagas e a paz do lar. Osvaldo já não era mais um crápula, apenas tinha que reconhecer o problema e procurar a ajuda de um médico. Coitado, não devia ser nada fácil afinal de contas…
Cândida e arrependida das crueldades que havia feito em pensamento, preparou para o marido toda sorte de comidinhas, pôs gelar a cerveja que tomariam juntos no banco do pequeno jardim enquanto os filhos se divertiriam com o cão. Tudo tão bom, correto e delicado que sequer podia acreditar que tivera coragem de pensar tanta besteira… era feliz, ora!… muito feliz!
Uma felicidade morna, chocha e repetida, certa. Nada mudava e Osvaldo era mesmo um homem de bem, bom pai e, na medida do possível, bom marido. Que mais podia querer?
O carro apontou na esquina e ela correu para abrir o portão. O mesmo beijinho de sempre, felicidade comedida. O nó da gravata desfeito, o dois primeiros botões da camisa abertos, a chave do carro posta com descaso em cima da pasta na mesa da copa. As crianças contam as novidades da escola, o cachorro quer um pouco de atenção e Maria Anésia busca os dois copos e a cervejinha trincando de gelada, no ponto.
Depois vem o banho, o “esfrega minhas costas, meu bem?”, o jantar leve e gostoso, o telejornal e as fofocas da vizinhança, as novidades do trabalho dele e o cliente que conquistou ou perdeu, as crianças sonolentas levadas para cama à força, uns momentos de carinho a dois… só.
Felicidade morna… e Maria Anésia, mais uma vez, adormece nos braços de Morfeu para só ressuscitar na manhã seguinte.