Noite Manchada com Nanquim

Um pingo de luz se esvaindo em luminosidade foi o que ele conseguiu imprimir em sua máquina de pensar virtualmente. Havia um calor de elefantes dentro da sala. Não era bem o que procurava, mas na ausência de uma centelha, valia à pena experimentar a sensação do brilho se incrustando no coração das pupilas. Ele entendeu que a espécie humana é uma metáfora arroxeada e com defeitos de fabricação. Quanta crueldade com o nosso Criador!, diria o pentecostal. Mas o que fazer diante deste homem agnóstico, duvidoso erguido à enésima potência?
O homem estava absorto. Como meditar é lua nova! Ele era capaz de oferecer meia dúzia de estrelas por uma falsa realidade…
O dia amanhecia. O calor combinava-se com os ruídos. Metamorfose cotidiana de qualquer metrópole. Um ou outro indivíduo cabia nas listras do asfalto, sem medo da velocidade das horas. A cidade amanhecia com vontade de comemorar seus esgotos. Mais tarde choveria. Um grito ou vários borrifaria sangues. A putinha de luxo escorreria desacetinada além do casco no inevitável parceiro. As caras deformadas de todo mundo rondaria pelas goelas da cidade. Os liquidificadores ressuscitariam e as torradas rasgariam os esôfagos ulcerados dos velozes equilibristas do grande circo. Seria hora de acordar, de rogar, de rosnar, de exaurir-se de tonteira e solidão, de exigir-se o mais-que-perfeito de hipocrisia, de estafar-se por um níquel de nada, por uma hora qualquer gelada num bar, por uma morte acidental ou pela ilustração de uma transa apocalíptica…
Ele rendeu-se. Ligou o rádio. Perdeu o medo da noite. Cuspiu a saliva fermentada. Jogou-se no espelho e consumiu-se. Não chegara a conclusão alguma depois da noite revirada de guinchos de freios, zunidos ruídos de bala, dores de doido adorando a lua. Passara a noite mirando a cruz vermelha desenhada na parede da sala. Garantia o desejo de crucificar-se sem perdão. Aquela poderia ter sido a sua última noite. Mas, não. O vício de espantar-se fora mais forte. Mais trágico que a própria morte. Ele, por fim, desdenhou de sua covardia.