“A vida prejudica a expressão da vida.
Se eu vivesse um grande amor
nunca o poderia contar”
Fernando Pessoa
Aquela imagem paralisou o tempo, e como uma estátua solidificada há séculos, ele ficou parado por outros cem anos, olhando-a. Parecia uma massa ainda disforme, a ser moldada pelas mãos da noite, mulher-boemia, cigarra-borboleta, mutação. Faltava apenas o tato, o contato íntimo de mãos e pudores segredados, risadas, seu bobo… Cairá o encanto. Ansiedade rápida, vem agora, você sou eu. Desfaz-se a imagem, transforma o sonho diante dos olhos em pedaços de vida sonhada. Praticidade efêmera. Essência poética de versos ainda não escritos, espera de séculos por aquele homem lírico a fazer dela um pouco dele próprio, amor.
Lembrou-se de suas nostalgias mais remotas, tentando resgatar outra imagem como aquela, tão branca quanto, tão pueril quanto, tão fresca quanto. Não vinha. Existia, sim, existia. Mas não vinha. Preferia que fosse uma mera ilusão e que, num estalo, ZIP!, acabasse. Não se decepcionaria, assim. Acabaria, simplesmente, foi uma ilusão, mera ilusão, como tantas, como sempre. Mas não era, ela estava ali, ela estava ali, meu Deus, cheiro, desejo, libido, sede, fome, cansaço, cem anos, um velho. Mas… ela.
Uma estátua para sempre e para nunca, mármore volátil rumo ao esquecimento, sem fragores, sem alaridos, sem gritos, ele. Paisagem de uma eternidade sugerida, início e fim dele mesmo, fonte inegostável de ternura estética, ela. A nudez da nuca dela, pureza de deleite, sofrimento. Mãos e lábios de beijos, sabores. Sedução demasiadamente próxima, e absurdamente inerente. Beleza vigorosa e pequena, volúpia de encanto e solidão ensimesmadas, ela. A pequena diante e distante dele, estrela majestosa num céu de estrelas sem charme. Cor, apenas. Destinos incertos, histórias perdidas nas amplidões de silêncios e corações sem donos, a procura de… Tudo se acha, sim, tudo. Ruínas de lembranças numa erosão de tudo e de si mesmas, padecer opaco, um grito sem som. A boca da noite e seus olhares, generosidade e restos de amores alheios. Fatalidade súbita, choro sem causa e sem gosto, o pranto, fim.
Terá consciência? Esbofeteia-o na cara com a indiferença da ativa realeza com que se faz ciente, ela. Entre homens cansados e suspirosos, ela é a diva, senhora de todas as delícias. Fecha os olhos, enlaça-a num carinho sem chão e sem legenda, ele. Queda, dois amantes caindo, uouuuuu… Metafísica. Cospe-lhe a crueldade do descaso, não vire! Lega-lhe a espera e o beijo guardado nos segredos, adeus… Ama-a, enfim. E?
Inanimado, mármore centenário, um velho, tristeza. “Estrela derradeira, amiga e companheira…”, ela, na poesia infinita dos outros, distância. Pedras, astros e tormentos, ah, essa vida que não me deixa…