A Fome Nossa de Cada Dia

Mas era sempre a mesma coisa. Todo dia. A gente nem percebia, mas parecia rotina, na mesma hora, todos juntos, e começava. Era aquela coisa que batia lá no fundo, de repente, no meio de algum exercício, prova, trabalho… o que fosse. Lá aparecia ela. Vinha tímida, como quem não quer nada, mas de um instante pra outro, num piscar de olhos, ela atacava e mudava tudo dentro de nós… os pensamentos se uniam em um só tema, os assuntos não variavam de tema, mas todas as opções eram discutidas, e saboreadas em nossa imaginação como se fosse real… esse era o seu ataque fulminante, que nos torturava durante aquela última hora, e depois no percurso de volta. Cada uma de nós seguia o seu caminho na mesma ansiedade de chegar, de poder sentir o cheiro do antídoto, o seu gosto, o prazer de acabar com aquela guerra de ruídos, vontades, pensamentos… mas aí que a tortura era ainda maior. Quando chegávamos o antídoto estava aos nossos olhos, ao nosso olfato, mas tínhamos que ser fortes e resistirmos mais um pouco, ou talvez nem tão pouco, antes de recebe-lo e descansarmos tranqüilas em nosso sofá. Era uma luta diária, que exigia coragem para não desistirmos no meio do caminho. Vocês perguntam que luta era essa? Pois digo-lhes que era a luta contra a FOME. Não era a FOME que se sente por não ter se comido a muito, ou porque não se tem o que comer… era aquela que batia na minha sala de aula, talvez na minha escola inteira, na última hora de aula… Cada canto, cada turma, cada “panelinha”, de meninos, de meninas, dos dois, era de lei: o assunto naquele horário era comida. Enquanto lá se falava de macarronada, com molho ou sem molho, ao alho e óleo, do restaurante que alguém foi ou do tempero da vó de fulano, logo ali se falava de churrasco… enquanto eu e minhas amigas conversávamos de bolos dava pra se ouvir os meninos comentando do peixe que algum deles comeu nas últimas férias que teve, que era assado, temperado com isso e aquilo, e o outro do lado dizia que não gostava de peixe… em meio a gostos e desgostos o bolo de laranja com cobertura de chocolate da minha mãe deixava minhas amigas de água na boca e pensamentos lambuzados. E eu descrevia o cheiro que vinha do forno, a primeira mordida que dei e era quando outra já começava a contar do bolo de aniversário de seu primo de 5 anos e por aí ia… O professor era dia de Português, dia de História. Quem ouvia a explicação? Ninguém. A classe parecia mais um Congresso de Gastronomia do que uma sala de aula… O estômago fazia um carnaval com aquele ataque de pensamentos deliciosos que nos afligia, e aquela última hora era penosa. Fazíamos planos de almoçarmos juntas “qualquer dia desses”, de fazermos isso e aquilo, e todos os dias combinávamos uma coisa diferente, o que nunca se cumpria… era só na hora da FOME mesmo. O relógio… nem te conto! Era o nosso pior inimigo. Falávamos, falávamos e ele parecia que escutava tudo com tanta atenção que esquecia de andar. Quando finalmente soava meio-dia, nos nossos relógios, nos relógios da escola, da igreja, e o sinal batia, era aquela festa. Todo mundo saía correndo, um querendo ser mais rápido que o outro, para chegar em casa o quanto antes, e poder ALMOÇAR. É, só que começava aí o caminho mais árduo e penoso da nossa FOME… Tudo parecia atrapalhar. O calor nos fazia suar, e a FOME, aumentar. O motorista do nosso ônibus parecia não entender a nossa pressa, já que atrasava pra chegar, dirigia devagar, conseguia a proeza de pegar todos os semáforos fechados… Dentro do veículo eu e minhas amigas procurávamos nos distrair com a paisagem, tentando não falar de COMIDA ou ficávamos mesmo reclamando de tudo, incluindo o motorista do ônibus. Uma descia aqui, outra ali, outra acolá, e eu era a última, a que morava mais longe. Nessa hora a FOME já parecia desenganada, e de tão grande se disfarçava com o cansaço, o calor, e aliviava. Até eu enxergar a minha casa, pois nessa hora, ela vencia todos os obstáculos e atacava novamente, mais forte do que nunca… eu entrava e fazia questão de ser pelos fundos, só pra ver o que teria almoço. Na verdade mesmo isso era masoquismo. Eu sabia que ainda teria que esperar até tudo ficar pronto. Eu sabia disso e mesmo assim eu queria ver o que estava no forno… se era uma torta, frango, carne… se teria macarrão, ou outro tipo de massa como lasanha, nhoque… também queria saber se o que estava sendo frito era pastel, batata ou peixe… pra poder sentar na frente da televisão, eu e minha FOME, e tentar convencê-la de que logo logo iria saciá-la. E esse momento finalmente chega. A porta se abre, lentamente, e eu que já estava vigiando-a vejo o rosto da minha mãe dizendo: – O ALMOÇO ESTÁ PRONTO! Essa é a minha glória! Finjo que não estava ansiosa e vou caminhando normalmente pra mesa. A primeira coisa que penso sempre é: “Que delícia, hoje tem almôndegas.” ou “Que delícia, hoje tem bife a milanesa”… Resumindo, é sempre a frase “Que delícia” acompanhada de “hoje tem” mais qualquer coisa que tiver na mesa. E eu faço meu prato, e eu como, me farto de tanto comer. Um pouco de tudo, e repito. Parece que tudo voltou ao normal. Quando sento no sofá da sala, deveria eu sentir um gosto de vitória e alívio, mas por incrível que pareça me sinto derrotada. Meu estômago está cheio, e tão cheio que não cabe nem sobremesa, me sinto sem forças pra nada, e não consigo me lembrar de como era estar com tanta fome. É uma coisa difícil de se explicar, mas acontecia todo dia de aula, comigo e com todo mundo da sala, da escola. Não sei se alguém percebia que já era rotina, mas era. Uma luta diária contra a força da natureza, dentro de cada um. Agora isso acabou. Estou de férias.