Acordo com uma réstia de sonho no olhar. Ainda sonolenta olho no espelho tentando decifrar o final incerto. Mas o véu que protege os sonhos num invólucro branco esconde o “The end” e abre uma clareira de insônia nesta madrugada. Agora resta-me embrulhar parte do sonho num papel de seda e guardar nos lugares mais recônditos da minha alma.
Às vezes penso que minha alma mora na garganta e que vou vomitá-la a qualquer momento toda úmida, cheia de poros, de veias, de fibras, anéis de saturno… sim, porque ela vive girando em torno de mundos planetários e veleidades. E, estamos sob a influência de Vênus. Seria essa a razão desses meus sonhos tão cadentes? Vênus é a deusa da formosura que nunca deve ter tido, sequer, uma ânsia. E eu aqui com esse creme grosso entre os dentes ensaiando um riso antártico. Eu aqui com essa languidez fora de moda querendo fugir pra dentro do espelho. A vida é assim mesmo? Corpo e sonhos desabam?!
Olho para os meus olhos. Quando rio eles ficam vincados. Mas ainda guardam algum brilho, algum susto… Estão mais próximo do retrato de uma santa do que da deusa Vênus. Ah, meu Pai, eu poderia até ser santa se não fosse tão pecadora se não tivesse esses sonhos povoados de desejos, essa vontade que é da carne (cada vez mais fraca). Mas tudo é vaidade. Até essa vontade boba de parecer com uma santa. “Brincadeiras tem horas, Lucilene.” Que posso fazer? Isso é uma crônica de espelho. Espeleologia diria o meu lado ignorante. Entretanto, meu outro lado, que está melhor situado, socorre-me com uma definição mais segura: espeleologia é o estudo das cavernas. E não é tudo a mesma coisa?
Vejam, a alma é a terra das cavernas. Cavernas fundas e escuras. É possível que na minha, haja uma gruta. Dessas que a gente vai descendo, descendo… e quando pensa que encontrou a superfície, se depara com um lago de água azul. Impossível não lembrar da gruta de Bonito, daquele lago quase encantado. Impossível não lembrar de Narciso que via sua beleza refletida no lago e que pecou ao querer conhecer o corpo antes da alma. Deve ter sido a solidão. Há uma grande solidão às margens do lago. Porque ninguém quer ir com a gente no fundo da alma. Então, Narciso saltou para a companhia dele mesmo. E nem supôs que aquele do espelho era um corpo sem alma.
Agora, cá estou eu, também em companhia de mim. O que a solidão não faz com a vida da gente? E olho pra mim sem jeito… No fundo eu queria ser aquela que está detrás do cristal. Aquela sem alma. Sem ter esse ponto fixo dentro de mim, sem essas alternativas de escolha. Que não tivesse sido contaminada pelo veneno da maçã e nem tivesse esse sangrar de dentes toda vez que a mordesse. Que não encobrisse as verdades e nem escondesse as lembranças em recipientes de tules e gazes. No fundo queria poder fazer da alegria essa coisa fixa, feito um retrato 3×4 com dentes à mostra. Mas tudo isso cansa. Cansa-me essa minha insanidade de ficar na frente do espelho numa madrugada qualquer. Cansa-me esse meu egoísmo de filosofar sozinha, esse silêncio que me deixa, irremediavelmente, lúcida e me obriga a criar todos esses devaneios para fugir um pouco da realidade.
Melhor voltar para a cama. Melhor sonhar. Pouco importa se dormindo ou acordada. O que a gente leva dessa vida são mesmo os sonhos. E que me perdoem a ignorância, ou que, a santa ignorância perdoe toda a minha insensatez.