Há coisas assim. Acontecem quando menos se espera. Tantos anos sem dela ter noticias, paradeiro desconhecido. E agora, ali, na mesa ao lado, conversando e rindo com o casal de namorados.
Confesso que quando me sentei para o meu café solitário não me apercebi da sua presença.
Aquele riso jovial, cascata cristalina, com ecos do passado, levou-me de viagem a um tempo longínquo, ao dia em que pela primeira vez a vi. Com olhos de ver.
Recordei-me dela ainda menino. Assíduas visitas a casa de meus avós e de meus pais. Sem data nem hora marcada mas sempre com uma alegria esfuziante. Aniversários, casamentos, baptizados, natal. Nunca faltava. Jamais fora necessário enviar convite. Sempre bem vinda como se à família pertencesse.
Aí entre os meus vinte e dois e vinte e cinco anos desapareceu.
Mais tarde, já eu tinha casa própria, filhos e uma vida estabilizada, decidiu-se a voltar. Horas prolongadas, dias seguidos as suas gargalhadas ecoando pela casa, noites de conversa até nascer a aurora, companheira de demoradas viagens.
Depois, as visitas foram rareando, tornaram-se mais espaçadas, até que deixou de dar sinal de vida.
Passaram-se anos e anos apenas com uma breve e fugaz aparição.
Até agora.
Ela e o casal de namorados continuavam a sua conversa alegre enquanto eu dobava os emaranhados novelos da memória.
Preparavam-se para sair quando ela passou os olhos por mim.
Senti que me reconheceu num lampejo de ternura breve.
“Vocês vão andando. Não demoro nada”, disse para o casal.
Voltou a sua cadeira para a minha mesa:” Quanto tempo….” .
Aguardei que continuasse, sem saber se era uma pergunta, se uma constatação, se um desfiar de recordações.
“Quanto tempo….”, repetiu.
Adivinhei saudade no seu sorriso?
“Vá lá… fale-me de si…conte-me tudo desde a última vez que nos encontrámos”.
Um dia inteiro seria insuficiente. Optei por manter o sorriso.
“Sabe de uma coisa? Vim agora de deixar na clínica um amigo com um filho muito doente. Acho mesmo que ele dificilmente escapará da doença. Está completamente destroçado…mas encontrei este casal de amigos, tão alegres no seu amor, tão contentes com a vida que decidi fazer-lhes companhia”.
Passou os dedos pelos cabelos que sempre conheci longos e rebeldes.
Os anos não lhe tinham deixado qualquer marca. A mesma alegria, a mesma aura, a mesma claridade.
Quanta vontade tive de lhe dizer que ninguém ocupa o lugar de ninguém.
Contive-me a tempo de não semear nuvens cinzentas no azul dos seus olhos.
À porta do café o casal aguardava, abraçado e indiferente ao mundo.
” Tive imenso prazer em estar consigo ao fim de tantos anos. Mas agora tenho mesmo que ir. Como vê, eles esperam por mim. Até depois”.
“Adeus, Felicidade”… e mergulhei na leitura do jornal.