Ele tem o tempo como um aliado e ponteiros intrigantes circulando sobre os pontos pretos da circunferência. Cada impulso o faz alcançar o minuto seguinte, criando uma trajetória longa; tão longa que seu inventor não pôde prever o tempo refletido em sua existência, nem acompanhar o ritmo que o levou a deslizar todos esses anos por uma esfera, como se o tempo e o espaço não pertencessem a este planeta.
Acostumado à rotina dos minutos, viveu sem maiores imprevistos ao som dos próprios passos. Trabalhou até nas horas chamadas mortas, sem férias, remuneração ou qualquer direito. Detalhes normais à classe que, dizem ser a única a trabalhar de graça.
Alguém que não conheci e que viveu muito antes de mim, adquiriu esse relógio. Talvez como ostentação, investimento ou até por necessidade – o que não acredito. Quem poderia necessitar ouvir a cada 60min. uma badalada tão intensa?
Ainda que eu não compreenda a razão dessa “intensidade”, devo admitir que o tal Senhor, se não se arrependeu, fez grandes descobertas. Por exemplo: que o tempo não voa, o tempo marcha. Que o mesmo está sempre alerta com sua grande tesoura e vai cortando segundo, minuto, hora até cortar toda uma existência. O tempo é determinado, vai recolhendo tudo com a perícia de suas mãos. Não perdoa, não faz acordo, não para… é cruel mesmo! Ainda que a gente peça, suplique que o instante de um abraço se perdure por um pouco mais, ou para que aquele momento de ternura se perpetue pela vida, num segundo tudo se desfaz.
O tempo sempre rouba a cena e leva-a para um passado distante, como se ela nunca tivesse existido. O tempo é uma borracha – já dizia minha avó – apaga tudo, só não apaga pecado. O pecado ele traz de volta, joga encima do telhado para que todo mundo veja!
Ando desconfiada de que o tempo seja nosso maior inimigo. Sabe aquela história de que nada melhor que um dia atrás do outro? Penso que o “nada melhor” deveria ser substituído pelo “nada pior”, quer saber mais? Tenho muito medo! Esse negócio de “correr contra o tempo”, “lutar contra o tempo” é pura deslealdade, a gente acaba sempre perdendo e de quebra, carrega no rosto as marcas da derrota.
É nessas horas (horas de reflexões) que relógio e tempo se confundem. Traços de melancolia ameaçam o meu humor. O tempo enfiado em minha sala, ou melhor, posto celeramente no recôncavo do meu destino e eu nem sei bem porquê.
Quem sabe no próximo século, uma mulher que eu nem venha a conhecer, mas, que casualmente tenha se tornado esposa de um dos meus filhos ou neto, semelhantemente, sente-se na sala diante desse artefato, conhecido atualmente por relógio, roube dele um momento, e nesse momento encontre silêncio e dentro do silêncio o respeito pelo objeto que mereceu por herança.