(VIAGEM MUITO DOIDA PELOS ANOS SESSENTA)
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À MEIA NOITE LEVAREI A SUA ALMA
Por que o afã de Daniel em iniciar o franzino amigo nos seus segredos? Talvez porque encontrasse em Marcos companheiro de quociente intelectual à altura do seu, alguém com quem conversar sobre as questões que o afligiam. Por que guerreavam as nações entre si? O que levava certas mulheres a mercadejar o próprio corpo? Por que a prodigalidade dos burgueses em comprar carros e jóias, contrastando com a avareza no salário da empregada ou na esmola para a pobre menina à porta do cinema na fria noite invernal? Em Marcos, Daniel encontrou o interlocutor ideal para suas perplexidades. O povo com que se relacionava ‹ os porteiros, o guarda, o jornaleiro, os favelados ‹, apesar da “sabedoria” instintiva, inata, carecia de uma consciência nítida de seus problemas e das injustiças de que era vítima. A mãe, dona Carmela, atinha-se ao seu pequeno mundo de receitas culinárias ‹ rocamboles de espinafre, massas para pastéis, fettuccinis ‹, fórmulas de economia doméstica, estações das frutas e legumes… O pai repartia seu tempo entre a fábrica e os arroubos da “segunda adolescência”, duplamente apaixonado por loura miúda mas bem proporcionada, com idade para ser sua filha, e por uma pretinha empregada da fábrica mais nova ainda. E os colegas da escola, empenhados em conquistar o mundo que se lhes abria pela frente, não estavam muito preocupados com as mazelas da sociedade.
Por efeito de alguma lei humana isomórfica à lei da gravitação universal, dois outros elementos vieram a se agregar à dupla Marcos-Daniel, formando constelação de quatro astros: o amigo de infância de Marcos, o delicado Afonso (a empatia entre Daniel e o pai de Afonso foi imediata) e um amigo de Daniel, tipo galhofeiro (não confundir com “farofeiro”), o impagável Renato, rei das piadas. Este, devido aos cabelos sempre aparados, recebeu o apelido de “Piroca”, que, afora a acepção vulgar, também significa “calvo, careca” (confira no dicionário, caro leitor!). A alcunha foi fruto de uma época em que Daniel e Renato se meteram a vasculhar o dicionário à cata de palavrões, descobrindo-lhes sentidos completamente incomuns, como de “bunda”, que pode significar “língua falada pelos indígenas de Angola”, “boceta”, que pode ser “caixa de rapé”, “porrada”, “guisado em que entram alhos porros” e “bicha”, que em Portugal é fila. A pesquisa lexicográfica rendeu momentos de grande hilaridade, os quatro “cavaleiros do apocalipse” perguntando, enigmaticamente e aos brados para que todos ouvissem: “Você já comeu uma língua falada pelos índios de Angola?” ou “Você já chupou caixa de rapé?” E morriam de rir com a pasmaceira dos outros…
QUANDO OS TERMÔMETROS cariocas começavam a marcar os 35, 36 graus, a mãe de Daniel, italiana da Toscana, dava início a festival de chiliques: “mamma mia, que calor, já estou derretendo, tomei uma ducha há dez minutos e já estou de novo toda suada!” “Seu” Rodolfo, homem de espírito prático e objetivo que, após anos de privações, via a sua fábrica de camisas dar os primeiros frutos financeiros, decidiu: “Vamos comprar uma casa de veraneio na praia ou na montanha”. Querendo mostrar-se magnânimo, delegou a dona Carmela a escolha. No fundo, não tinha dúvida de que optaria pela praia. Planejava construir a casinha num lote que comprara, anos antes, para as bandas de Sepetiba (“no futuro, vai valorizar”). Entretanto, a preferência de dona Carmela o pegou de surpresa: queria porque queria montanhas como as da terra natal, onde pudesse ouvir os passarinhos e respirar o orvalho matinal. Seu Rodolfo pesquisou daqui, pesquisou dali, percorreu os anúncios do Correio da Manhã, comprando por fim casinha de dois quartos, quintal com galinheiro ao fundo e gramado de frente, na aprazível cidade serrana de Teresópolis, a mais ou menos cem quilômetros do Rio, via Petrópolis.
Com a separação entre seu Rodolfo e dona Carmela, coube à mãe o imóvel em Teresópolis, ficando o pai com o terreno em Sepetiba. Todo verão, passada a fase de chuvas torrenciais que punham o Rio de Janeiro em estado de calamidade e terminadas, também, as provas finais no colégio de Daniel, tão logo o Repórter Esso começava a noticiar máximas superiores a 35 graus em Bangu e o asfalto da Presidente Vargas se fazia sentir mole sob os pés, dona Carmela juntava roupas, panelas, lençóis e um sem-número de trastes nas enormes e antiquadas malas trazidas da Itália, verdadeiros baús ambulantes, despachando toda a tralha para a serra, ela e o filho subindo de ônibus.
Que contraste, para o menino Daniel, entre o burburinho do Rio de Janeiro ‹ as peladas com os moleques, as caronas nos estribos dos bondes ‹ e a placidez da cidade de veraneio! No entanto, o irrequieto infante, dotado de espírito explorador, logo tratou de percorrer, em sua bicicleta, cada metro quadrado da cidade, e, em pouco tempo, não havia biboca que não conhecesse, vindo a descobrir coisas do arco da velha.
Numa loja próxima à igreja, em antigo comitê eleitoral de algum candidato derrotado, instalara-se museu de cera com impressionantes carrancas de Caril Chessman, Al Capone, Adolf Hitler e outros elementos de alta periculosidade, além de deprimente exposição “somente para adultos” (mas Daniel, sorrateiramente, por ela se embrenhava) de doenças degenerativas, rostos marcados por bexigas, membros deformados pela lepra, imensa perna vítima da elefantíase, horrendo pênis cavado por um cancro… (Tratava-se de museu itinerante. Dois ou três anos depois, acrescido de novas alas, uma das quais exibia picadas de aranhas e cobras, quando Daniel levou os seus novos amigos, Marcos e Afonso, para conhecê- lo, sentiu-se este último tão nauseado ante a exposição de vagina purulenta e banhada em sangue, a ponto de precisar ser literalmente carregado para um bar, somente o torpor de uma cachaça com vermute conseguindo aliviá-lo daquele mal-estar profundo, metafísico quiçá… mal-estar que o levou a, temporariamente, duvidar de Deus e, por um átimo, desejar nunca ter nascido.)
No grande terreno da prefeitura, em frente à praça, o parque de diversões, com tiro ao alvo, carrossel, roda gigante e, como atração máxima, o trem-fantasma: tenebrosa câmara de horrores povoada por seres amedrontadores e repelentes, carrascos mal-encarados, fantasmas sombrios, almas penadas, bruxas cavalgando vassouras e toda a coorte dos entes infernais (vade retro, Satana!)… Com que prazer sádico Daniel trazia ao trem-fantasma cada novo amiguinho ou amiguinha que conhecesse. Chegava às raias do regozijo ao passarem por galeria absolutamente escura, preta como a visão de um cego, onde a cabeça da vítima inesperadamente roçava algum pano invisível pendurado do teto, gelando o coração de quem não possuísse nervos de aço!
Sem falar no cine São Miguel, com bancos de madeira e telinha de festa de aniversário, reduto das empregadinhas do comércio e das pulgas de Teresópolis e especializado ‹ ao contrário dos cinemas mais chiques, Vitória e Alvorada, repetidores dos sucessos recentes das telas do Rio de Janeiro ‹ na exibição de produções de classe D, chanchadas de total indigência intelectual (a que ponto chegara a arte de Plauto, Molière, Chaplin), faroestes com heróis tão bisonhos, que a platéia acabava torcendo pelo cavalo, e os indefectíveis filmes de horror do Mojica Marins, À Meia Noite Levarei a sua Alma, Esta Noite Encarnarei em seu Cadáver…
Ano sim, ano não, instalava-se, num imenso terreno baldio, o “mundialmente famoso” Circo Internacional, com atrações “dos cinco continentes”. Cadelinhas amestradas, rabos em pompom, lacinhos sobre as cabeças erguidas, librés de veludo entre o cor de rosa e o bordô, adentravam-se no picadeiro em fila indiana, como se fossem soldadinhos, e, obedecendo aos comandos do amestrador, praticavam as mais hilariantes estripulias. A cena mais cômica era a súbita aparição de parrudo buldogue de maus bofes e olhar hidrofóbico, trazendo o pânico aos delicados canichos, que se punham em desordenada fuga, provocando os risos da platéia. Dona Carmela sentia compaixão pelos pobres cães, tão infelizes naqueles aviltantes papéis. Daniel, porém, tendo lido numa enciclopédia ilustrada sobre as experiências de um fisiologista russo, que provocara a salivação em um cão como resposta ao soar de uma campainha, acreditava serem os animais, embora simulem sentimentos como a fidelidade e o amor ao dono, meros “autômatos” da natureza, programados para darem determinadas respostas a certos estímulos. O mágico fazia objetos desaparecerem e reaparecerem ante o olhar atônito da platéia, dir-se-ia contrariando as próprias leis da natureza. Os palhaços, de rostos pintados e narizes redondos e vermelhos, com suas cambalhotas, trapalhadas e pilhérias, faziam rir crianças dos oito aos oitenta. Daniel, no íntimo, compadecia-se daquelas pobres criaturas que, para ganharem o pão de cada dia, precisavam se fantasiar de palermas e proferir tolices. Houve um ano em que o circo trouxe atração especial: hórrido leão africano, fauces escancaradas, dentes salientes, que o chicote do domador tornava manso como gatinho. Dona Carmela apavorou-se; anos antes, quando Daniel sequer havia nascido, lera uma reportagem em O Cruzeiro sobre um leão que fugira da jaula durante um ensaio e abocanhara a cabeça de uma criancinha, cujo irmão a abandonara à própria sorte no afã de salvar a sua pele.
Em suas perambulações por esse mundo mágico de fantasmas e feras e nos longos passeios de bicicleta, Daniel era amiúde acompanhado pelo amigo Renato, o tipo mais faceto que já pisou sobre a face da terra!
Conheceram-se no parque de diversões, numa apresentação da donzela que se transformava em peludo orangotango. A certa altura, a besta-fera desprendia-se das correntes que a retinham, ameaçando irromper sobre a estupefata platéia. Mulheres em pânico punham-se a gritar histericamente, crianças choronas subiam ao colo de seus papais (o juiz de menores proibira o espetáculo para menores de dezesseis anos, mas a ordem não era acatada)… No ambiente de pavor, em que o próprio Daniel suava frio, um tipo gaiato ‹ desses que na igreja engolem a hóstia como se fosse biscoito e, no velório, conseguem provocar ataques de gargalhadas na viúva; “frívolo peralta, tipo que morto não faria falta”, nas palavras do poeta ‹ subitamente gritou para o símio:
‹ Vem cá, meu bem, vamos brincar de papai e mamãe! ‹ despojando o evento de toda a sua aura de tragicidade. O jovem Daniel, querendo mostrar igual intrepidez, acrescentou:
‹ Bilu, bilu, vem namorar, gracinha! ‹ ao que o monstro, irado com a dupla provocação, esboçou carantonha tão horripilante e emitiu brado tão medonho, que a valentia de Daniel se desfez como açúcar na água. A partir desse sucesso, Daniel e Renato tornaram-se amigos inseparáveis. No dia seguinte, Renato trouxe Daniel à casa de veraneio dos pais, situada na Fazenda da Paz, condomínio com piscina, sauna, pingue-pongue e outras amenidades, a vinte minutos de bicicleta da Várzea. Afora a propensão para a galhofa, Renato não se destacava por traços marcantes: beleza ou feiúra excessiva, altura ou pequenez anormal… Seu guarda-roupas não comportava modismos extravagantes: nada de jacarezinhos Lacoste, golas rolê, bocas de sino… Renato trajava, invariavelmente, calças de brim (ou de tergal, em ocasiões especiais) e camisas de manga curta de um algodão muito prosaico, algumas listradas, outras com bolinhas, muitas unicolores, predominando o azul-claro ou o bege. Calçava indestrutível Vulcabrás, sendo o derradeiro remanescente daquela raça de antanho que usava galochas (não obstante, contrariando o dito popular, estar longe de ser um chato). Renato era famoso pelo guarda-chuva, sua marca registrada, do qual dificilmente se separava, alegando a imprevisibilidade do tempo e se jactando de, ao contrário da maioria dos mortais, nunca o haver esquecido em algum ônibus ou sala de espera. O cabelo de Renato jamais refletiu a moda, incólume ao príncipe Danilo, ao topete, às franjinhas tipo Beatles: moderadamente crespo, bem aparado e repartido do lado esquerdo numa linha reta como se traçada a régua. Jamais usou Gumex, Brilcreem ou qualquer outro produto que lhe mudasse o brilho ou a tonalidade ou a encrespação da melena. “Coisa de bicha”, dizia. Vez ou outra, surgiam-lhe flocos de caspa, que procurava combater com poderoso remédio à base de sulfato de selênio, que lhe deixava os cabelos ressecados e cheirando a laboratório químico.
Destituído de qualquer laivo de seriedade, quando o assunto em pauta era o racismo, mostrava-se peremptório:
‹ Há duas coisas que abomino ‹ bradava, simulando extrema seriedade. ‹ A primeira é o racismo. A segunda… ‹ Neste ponto, interrompia a frase, retomando-a, segundos depois, em tom de gozação. ‹ A segunda são os crioulos!
Atribuía-se a Renato a seguinte máxima, a respeito da eterna querela sobre a relação entre felicidade e dinheiro:
‹ O dinheiro não traz a felicidade, mas deixem-me ser infeliz com um milhão de dólares lá em Paris!