Chovia forte. Marcos Alcaide caminhava a passos largos, espirrando a água por onde passava. Tinha nas mãos um guarda-chuva que já não o protegia. As costas da camisa estavam encharcadas e as calças molhadas até o joelho. Mas ele prosseguia com seu andar que parecia decidido. Tentava fugir de tudo. Esquecer tudo o que o afligia. Não sabia para onde ir e caminhava sem rumo, a esmo.
Trazia nos bolsos tudo aquilo o que sempre trazemos conosco, a não ser, é claro, os que não fumam. Sim, porque além da carteira, da agenda eletrônica e algumas chaves, ele tentava proteger o maço e o isqueiro. Mas era inútil. A umidade já havia penetrado pelo tecido e inutilizado pelo menos os cigarros mais da ponta. Foi o que descobriu quando parou debaixo de uma marquise para acender um deles. Dois ou três se esfacelaram quando tentou puxar, e por fim encontrou um cigarro torto, amassado, mas que serviria para lhe aplacar o vício.
Acendeu um Marlboro desses de filtro laranja com dificuldade, depois de tentar inúmeras vezes o isqueiro. Por fim, pôs-se a olhar as pessoas que passavam, correndo para se abrigar da chuva. E postou-se ali, xingando cada motorista que passava espirrando água para todos os lados, inclusive nele. Parecia nervoso. E estava nervoso. A fumaça que lhe saía dos pulmões não levava embora a lembrança que o atormentava, uma tortura que era verdadeira punição. Ele ainda não conseguia se controlar.
Estava parado exatamente na porta de uma lanchonete. Uma lanchonete suja, com ladrilhos amarelados nas paredes, cujas bordas estavam imundas de fuligem. O cheiro de gordura que vinha da chapa escura era nauseante. Algumas pessoas comiam sanduíches, indiferentes a tudo aquilo. Mas um rapaz moreno, magro, que tinha maionese e mostarda escorrendo pelas mãos enquanto dava dentadas enérgicas em um sanduíche com um recheio que escapava do pão olhava para ele de um jeito estranho, enquanto mastigava lentamente.
O sujeito tinha um jeito meio malandro, e parecia sorrir um sorriso discreto, irônico. Usava uma camisa de uma cor branca desmaiada, com estampas desbotadas, aberta até a metade da barriga, exibindo o peito. Vestia ainda um jeans surrado e um tênis gigantesco, de cano alto, remendado com uma daquelas fitas prateadas. E continuava olhando para ele, fitando-o com aquele ar sarcástico e inquietante. Até que estendeu a mão displicentemente, apontando um assento vazio à sua frente:
– “Dr. Alcaide, há quanto tempo. Aceita um refrigerante?”
Marcos olhava fixamente para aquele rapaz com jeito tão estranho. De onde será que o conhecia? Como saberia seu nome? Atraído por estas perguntas, aproximou-se, desconfiado. Tanto que sentou-se no banquinho, deixando o guarda-chuva ao colo, mesmo molhando toda a roupa, como se aquilo pudesse lhe dar alguma proteção. Foi logo pedindo para o rapaz se identificar:
– “Quem é você?”
O rapaz sorriu sem alguns molares:
– “Claro que o senhor não lembra de mim, não é, Dr. Marcos? Mas eu me lembro do senhor! Lembro muito bem. Trabalhei na sua empresa de engenharia, se recorda? Eu era mensageiro…”
Marcos não lembrava:
– “Ah, claro que me lembro! Você ajudava muito a Dona Teresa, nossa secretária.” arriscou.
O rapaz sorriu satisfeito:
– “Mas não deve se lembrar do meu nome. O pessoal lá me chamava de Toninho” limpou-se em um guardanapo de papel e estendeu a mão engordurada, que Marcos apertou rapidamente, disfarçando o asco que sentia.
– “O senhor deve estar preocupado. Andando assim, na chuva, todo molhado, aqui pela Brigadeiro Luís Antônio. O senhor já abriu outro escritório?”
Marcos Alcaide sentiu-se pior do que já estava com aquilo tudo. Agora até aquele rapazinho, metido a esperto, formulava com um ar maroto a pergunta que muitos faziam. “Quando vai abrir um outro negócio?” Respondeu contrariado, quase grunhindo, com o canto da boca:
– “Isso não é da sua conta. Eu tive minha licença profissional cassada.”
Toninho não perdeu a pose:
– “Ah, mas isso deve ser fácil para o senhor, um homem rico, com tantas influências. O senhor tem uns amigos que são deputados, não é? Tinha uns vereadores aí no bolso… é pessoa influente!”
Marcos Alcaide arregalou os olhos enquanto amassava alguns guardanapos na mão. Como aquele moleque, que não devia ter mais de 22 anos, podia falar tudo aquilo? Como ficou sabendo de alguma coisa? A resposta veio do próprio rapaz:
– “O senhor deve estar espantado, não é? Não se preocupa não. Eu sou uma pessoa confiável. Lá na Vila me chamam de “Truta do bem” por causa disso. Algumas secretárias lá da firma me contavam algumas coisas… foi assim que eu fiquei sabendo, mas o seu segredo morre comigo.”
Marcos Alcaide não estava confortável. Mexia-se na cadeira mas não achava a melhor posição. O motivo do desconforto estava mesmo diante dele. Que mais aquele moleque sabia? Procurou outro cigarro no maço amarrotado. Toninho estendeu-lhe uma caixinha da mesma marca, Marlboro, mas daqueles paraguaios vendidos em camelôs.
– “O que foi que te contaram?” Marcos perguntou enquanto acendia o cigarro oferecido, segurava a fumaça no peito e tentava não reparar na barata que caía da coifa em cima da chapa de lanches. O rapaz parecia entusiasmado:
– “O senhor não precisa se preocupar não, viu? Teus segredos estão bem guardados. Eu admiro muito o senhor, e quando tiver uma nova firma, eu volto a trabalhar com vocês sem problema. Eu nem acreditei muito no que me contaram… essas histórias de dar golpe, isso pra mim é conversa fiada. O senhor é um homem muito digno, que eu respeito muito. Essa é a verdade.”
Marcos Alcaide sentia vontade de vomitar. A visão da barata agonizando no meio da gordura quente, em cima da chapa, se misturava ao jeito impertinente de Toninho falar, tentando fazer amizade. O cigarro aumentava o enjôo mas ele não queria apagá-lo. Pediu uma Coca Cola, ponderando que pelo menos um produto assim, engarrafado, não podia lhe fazer mal. O refrigerante foi trazido com a garrafa gelada, mas o líquido estava meio quente. E o rapaz já não queria mais parar de falar:
– “Quem me contou tudo foi a Dona Quitéria, depois que eu levei ela pro Drive In” e fez um gesto obsceno com a mão, um sinal de sacanagem.
Marcos Alcaide não conteve o espanto:
– “Mas ela tinha uns cinqüenta anos, era uma mulher meio gorda!!! Cuidava da agenda do Rodolfo…”
Toninho nunca perdia o gingado:
– “Era feia, né, Dr. Marcos? Mas ela me dava uma grana pra eu comer ela. O senhor sabe, mulher nessa idade fica difícil arranjar um moço que nem eu. Mas eu não beijava ela não, que eu não sou de agarrar baranga. Mas acho que o senhor vai me entender… é isso o que nos aproxima. Nós dois fazemos as coisas por grana… é que eu só ganhei uns trocados” Toninho sorria novamente exibindo os dentes imperfeitos. Marcos Alcaide regurgitava o refrigerante, estava cada vez mais enjoado. Tinha vontade de dar um murro na mesa, mas foi tomado por uma sensação de impotência que bloqueava suas ações.
Nada faria o rapaz parar de falar:
– “O senhor sabe que eu não o culpo de nada. Acho uma tremenda duma sacanagem o que lhe fizeram. Eu sei que o senhor vendeu uns prédios que não existiam… falou que ia construir, levou a grana. Nada mais justo, ué? O mundo é dos espertos. É que nem eu, Dr. Marcos, sei que só tem trouxa nesse mundo! E quando cai na minha, já era. Já dei muito trambique por aí. Já vendi fumo dos ruins, desse que a gente mistura bosta mesmo, pra esses bacanas otários que vão lá na Vila com uns puta carrão.”
O engenheiro Marcos Alcaide, com 45 anos, destruiu uma empresa bem estabelecida, a Alcaide Empreendimentos, depois de um golpe na praça que foi divulgado em todos os jornais, na televisão, no rádio e até na Internet. Lesou 342 pessoas vendendo incorporações que não existiam. Levantava as fundações dos edifícios para poder pedir a entrada do alto valor que cobrava pelos imóveis.
Foi denunciado por um repórter que gravou tudo com uma câmara escondida. O jornalista comprou uma unidade e depois acompanhou o caso, registrando inclusive as desculpas que ele dava para que o projeto nunca saísse do papel. A exibição da denúncia foi a gota d´água para as inúmeras queixas que se acumulavam sem resposta no Procon. Alcaide agora respondia a processos na vara cível e criminal. Gastava uma fortuna com advogados que buscavam salvá-lo, tentando justificar o inexplicável. O registro do CREA havia sido cassado e, com o nome na lama, era difícil arranjar algum lugar para trabalhar. Ninguém o compreendia.
Menos o desagradável office boy, que sorria à sua frente, sentia-se amigo e queria ajudar:
– “Olha, Dr. Marcos, eu tenho certeza que o senhor vai se sair bem dessa. Figurão, muito bacana, taí todo molhado, com cara de triste, mas eu sei que o senhor tem grana. E é isso que vai livrar o senhor. Sorte sua viver neste país. Aqui, gente como a gente tem aos montes. O senhor vai ver só. Em breve vamos voltar a trabalhar juntos, não esquenta não.”
Marcos Alcaide levantou-se enquanto o chapeiro retirava a barata estorricada de cima da chapa com uma espátula. Largou o guarda-chuva e correu para a porta, pisando na calçada molhada pela tempestade que caía havia poucos instantes. Fez sinal para um táxi e mandou seguir direto para o apart hotel em que se hospedava, depois da venda da mansão em que morava. Lamentou não ter a mulher em casa para consolá-lo, porque a vontade era deitar-se no colo dela e chorar que nem criança. Mas a esposa já o havia abandonado, levando os filhos, e namorava o dono de uma empreiteira concorrente. Da lanchonete da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, Toninho ainda gritava:
– “Boa sorte, Dr. Alcaide. O senhor vai precisar. Quando estiver de volta, eu procuro pelo senhor.” Voltou-se para o chapeiro e disse: – “Gente importante é assim mesmo, sempre com pressa! Nem deu tchau, meu…”.