A Espingarda Espanhola

Pode até parecer, mas isto não é um causo ou coisa inventada; é a mais pura verdade! Era assim um desses dias espichados de dezembro, que demoram pra escurecer, e eu largava cedo, chegando em casa antes do sol descer. Meu tio aportou lá em casa era quase hora da janta, e me convidou pra caçar, quem sabe uns jacus na fruiteira, nas imbaúbas do Mata-Onça, que era o tempo deles. Mas aquilo era pra já, pra estar ajeitado na espera antes do anoitecer e não fazer bulha, pra não espantar os ariscos pássaros. Depois até se podia tocaiar um tatu, sendo o caso. Mas não fui. E não fui de reiva, que detesto convite de última hora, no afogadilho. Desses, nem pra enterro eu aceito, a menos que seja de defunto matado. Convite assim, acho grande falta de respeito, quando não má-vontade ou coisa de obrigação. É convite de cortesia, pra gente refugar mesmo. Ele, então, me pediu emprestada a minha trinta-e-dois espanhola. Essa era separada, merece relato mais amiudado: era uma sarrasqueta de estima, legítima madespã de dois canos, mocha, feita de encomenda, com gravação de nome estrangeiro na régua do cano, desenhos de riscos finos entrelaçados na caixa da culatra, gatilho doce, e tudo. Coisa de ver e gostar.
Nessa ocasião, vi que era esse o verdadeiro motivo da visita. O convite era só pra disfarçar, porque ele bem sabia que eu não ia aceitar uma convocação feita daquele jeito sem jeito. Sou sistemático, tenho cá meus preceitos de agir. E se há outra coisa que mais tenho jeriza é emprestar a minha espingarda. Espingarda pra mim é coisa particular, de uso exclusivo do dono, igual a escova de dente ou lenço de assoar o nariz. Mas, sendo tio, irmão de mãe, não tive outra saída. O jeito foi emprestar, ainda que me doesse o coração. Foi na capa, protegida, oleada, a coronha reluzindo de tanto que tenho capricho, o cano bem cuidado, azulando o aço fino. E os cartuchos de metal bem carregados, chumbo três-tê, pólvora de qualidade, carga pra nenhum botar defeito. E foram. Ele, um primo e um mateiro, um dito Antônho Bragança, tocaieiro de marca, do qual nunca eu gostava. Foram se enfiar na serra, caçar de esbarro, saindo depressa pra não chegar depois da hora. E eu fiquei bicudo, enciumado da minha espingarda, coisa de luxo.
Voltaram dois dias depois. Minha espingarda estava judiada, arranhada, a capa pingando de molhado, esfumaçada de tanto que tentaram secar ela em beira de fogo; a bandoleira estourada, o azul do cano estava que era só ferrugem. Num escangalho que dava dó! O sangue me ferveu na idéia, fiquei com uma bruta vontade de esmigalhar a cabeça do tio com a coronha da espingarda, isso se não lhe desse ainda uns tiros bem dados. Me segurei pra não criar ingresia dentro da família e porque sou sujeito educado, mas disse uns bons desaforos pra ele. Ia levar tempo pra pôr minha arma de novo em dia. Depois que me passou o nervoso, ele me contou a história do que se tinha passado.
E foi mais ou menos assim, reconto sem aumentar: no que entraram no mato, já logo deram de cara com um cateto sozinho, no susto. O bicho tava perdido do bando, meio abobado, e foi matado a tiro certeiro, com facilidade. A carga inteira no volta do apá, sem chance nenhuma de escape. Como era fim de tarde, inda dia claro, podiam dar uma volta pelo mato antes de armar o pouso. E penduraram o porco numa canela-preta, de cabeça pra baixo, bem amarrado com embira passada no garrão do pé. Ficou pendurado. E seguiram por umas picadas a ver se esbarravam ainda nalgum macuco, jacutinga, ou o que fosse. Voltaram de mão vazia, mas, qualquer modo, ainda tinham o porco. Tinham? Era o que eles pensavam. Porque, na volta, quedele o porco? Tinha sumido.
De princípio, pensaram que algum caçador sem-vergonha – que tem bem desses por aí – tinha levado o bicho como se caça sua. E fuçaram em roda, bem umas quinze braças de largo, sem achar nada, nem traço do cujo, afora umas manchas de sangue no pé de pau onde ficara dependurado. Tirante isso, mais nada. O cipó tinha rebentado, e aquilo não tinha marca de fio de faca. Não atinavam com o que pudesse ter sucedido. Então, meu tio avistou um monte de folha seca que antes não tinha notado. Remexeu com uma vara, e lá estava o porco, entanguido. Coberto inteiro, sem sinal de ter sido arrastado. Meu tio examinou, parou, e arrepiou até o pêlo da venta:
– Ou isso é coisa do dianho, ou do corpo-seco – que, digo eu, que há, sim, disso no mato – Ou o que amoitou o porco na folharada foi… onça!- O tio afirmou aquilo no seguro do que dizia, e nenhuma chance era boa.
– ?! – os demais deles nem nada disseram, mas abriram a boca e arregalaram os olhos.
E foi o suficiente para que esses dois já quisessem virar nos cascos e ir s’imbora ligeiro. Fosse o que fosse, ninguém tava preparado pr’aquilo. Nem santo tinham pra se apegar. Espingarda fina, de passarinhar, no máximo pra tiro em bicho mais miúdo. Onça já era outra coisa, e corpo-seco era castigo, danação do diabo, nem pensar nisso queriam.
– Esconjuro!
Mas o tio era teimoso mais que uma mula viciada, e insistiu que ficassem. Não era bem valentia, mas a tanta curiosidade. Mesmo encagaçados, acabaram por ficar, com uma cisma danada. Fizeram um jirau na árvore, e subiram para esperar. Anoiteceu de vez, a escuridão tomou conta de tudo, breu puro, e qualquer barulho agora parecia ser mais assustoso.
– Eta medo!
Um farfalhejo de galhos de árvore era o suficiente pra nego querer pular pro chão e despinguelar na corrida. O pio agourento de uma rasga-mortalha era um tremor de susto no pretume do mato. Isso porque nunca tinham ouvido ainda um grunho cavernoso de onça. Que, no Mata-Onça, de onça mesmo só tinha até então a lenda da onça maneta. Mas, lá pelas tantas, já lua alta, quando nem mais era esperado, veio. Veio, primeiro como que um vagido, depois o rugido poderoso.
E foi mesmo temeroso de feio: um som rouco, gorgolejado, vagaroso e grosso, arrancado do fundo da goela, que estremecia o chão e mais qualquer coisa vivente; dos caçadores, até o mais macho deles sentia o som na barriga, e o couro das costas tremia, mesmo sem o sujeito querer. O regougo da bicha ficava ecoando no mato, o resto calava, nem grilo grilava. E cada vez vinha de um lado, como se ela estivesse arrodeando, fechando cerco, sabendo que eles estavam ali. O mateiro Bragança, tocaieiro afamado, soluçava espremido no escuro, rezando a quanta oração sabia, da mais poderosa até ave-maria.
– Em-nome-do-pai, do fio… – era o Bragança, esse, cuja fama se acabou em nada nesse dia.
O primo pretendia que não se abalava, mas seu joelho chacoalhava que nem castanhola. O tio era o único que não demonstrava, mas sua feição escondia a brancura de uma folha de papel de caderno, a boca seca que nem se tivesse areia no dente. Os rugidos agora eram mais seguidos, ela tava chegando perto, andando de roda, prenha de manha e cisma. A lanterna de pilha tremia malsegura na mão, descuidasse e ela caía no chão. Boca e ouvidos abertos, que a bicha se aprochegava. Esperava-se ouvir ela retirar o porco do monte de folhas, aí era a hora de alumiar e desfechar tiro. Mas, nada! Só quietação.
E, de repente, o esturro afrontoso, já bem perto, quase derramando da árvore os caçadores, que já se arrependiam de tudo na vida, apavorados. Só não faziam gritar porque estavam mudos. Pra eles representava que tava embaixo, abeirando o pau, quem sabe trepando atrás deles, de bote armado, que a dita enxerga no escuro e tem um nariz de primeira. Não dava mais pra ficar naquela agonia, e o tio decidiu que acendia a lanterna pra ver o que se passava. Fosse o que Deus quisesse. Foi na hora, pois que o gatão já ia levando o cateto no dente, e eles nem tinham ouvido rumor, um que fosse, nem um estralo de graveto quebrado. Puro sigilo, a onça andava no macio, como se nem pusesse as patorras no chão. O tio assestou a espingarda na cara, firmou pontaria pro rumo do facho da luz…
– Atira, Zé! – os outros pediam em pensamento, que a língua não obedecia. E estrondou o tiro.
A espanhola não negou fogo e, por honra da marca, latiu chumbo grosso e fumaça. O fragor do estampido se misturou com o berro fundo do bicho, um grunhido medonho, agora era o fim, ela vinha pra cima deles.
– Deus nos acuda! – nem sei quem falou.
Estourou mais outro tiro, o do cano de choque, o esquerdo, o derradeiro. Esse tinha, por força, que dar conta dela, ou eles estavam perdidos. A onça bambeou, espojou-se reivosa no chão, urrando, o sangue começando a escorrer do buraco da paleta, do tiro ajuntado, e ela foi se encolhendo a jeito de pular pra diante, unhonas de fora, mas estrebuchou arrancando cavaco do pau a munhecaço, estapeou o ar um par de vezes, roncando, e foi amolecendo até se aquietar de vez. Morta. O olho amarelo agora semelhava de vidro.
Mas cadê coragem de descer do pau e encarar de perto o focinho do animal? Por garantia, ficaram empoleirados ainda bem uma meia-hora, para se certificar. Mesmo depois que desceram, meu tio se pôs de banda, atento, dedo enristado no gatilho, enquanto os outros cutucavam a onça com uma vara de pau, a modo de ver se ela tava bem falecida.
Depois, fizeram um varal e, a muito custo, tiraram a onça do mato. Regulava pra mais de seis arrobas, bicha criada. Ainda tremiam, mas foram pra vila e contaram miles vantagens, embora ainda fedessem um pouco pelo que fizeram de medo nas calças. Disso tudo só sei eu, e não divulgo a ninguém, que para os outros eles contam a história bem diferente, alardeiam as patas e a cabeça da suçuarana como troféus, dizendo que foi muito fácil. Gabolice deles, os porqueras! Eu é que sei! O pior de tudo, é que ela foi morta com a minha espingarda espanhola, que agora, a mais das qualidades que já tinha, vem de ser também onceira. O causo é que, não fosse a minha reiva de convites malfeitos, aquela onça era pra ser minha.
– Tivesse eu ido naquele dia, eu mostrava pra ela!