Deixa eu te contar como é que foi. Não se ofenda. Tive medo. Deixa eu te contar o que aconteceu. Sei que seria bem recebido, talvez até com um café bem brasileiro. Mas tremiam-me as pernas e o trem já partia e era de manhã muito cedo e eu não consegui raciocinar direito. Não se ofenda.
Havíamos enfrentado uma noite difícil no trem. Inexperientes, entramos na cabine com nossas roupas de dia, cheirando ao calor de Viena. Sentamo-nos e ajeitamo-nos da melhor maneira que podíamos na segunda classe, cada qual com um livro na mão. Não conseguíamos ler; ríamos sem parar. Porque era para isso que estávamos ali, para rir de nossas agruras. O ar condicionado iria congelar-nos, tenha certeza. Entraram três gregos gordos na cabine que ocuparam plenamente as quatro poltronas restantes. Eram três gregos gordos. Que falavam naquela língua indigesta que pensamos primeiro ser um dialeto italiano, ou um dialeto alemão. Era grego mesmo, mas entre as palavras entendíamos coke e pizza. E lembramos queestávamos com fome e não tínhamos vintém. E o frio, eu já falei do frio? O frio é importante para o decorrer da história.
Os gregos não dormiam e nós nos esforçávamos para dormir porque sabíamos que o dia seguinte seria dureza. Meus pés tinham cinco bolhas democraticamente distribuídas pelos dedos. Havia dois dias não sabia o que era um banho e há quase um mês o que era um banho decente. Os gregos riam e gritavam ou talvez só sussurrassem lá na língua deles. E eu tentava ler o Autran Dourado, fazer o quê? O trem e seu ruído monótono aos poucos foram me fazendo esquecer os gregos, os gritos dos gregos e o cheiro bom da comida que os gregos comiam e eu com fome e frio e você adormeci.
Às seis horas da manhã estávamos em Bolonha. O trem parou e os gregos fizeram menção de descer. Rimos, aliviados. O sol já gritava seus raios e o frio do ar condicionado já não doía tanto. À noite nos cobrimos esticando as mangas das camisetas.
Eu acordei e disse Bolonha baixinho e pensei em você. Ouvi uma piada sobre a gente – todos sabem de nossa história – e ri meio constrangido porque sabia que você estava ali em algum lugar. Não sei porque pensei que seu apartamento ficasse ao lado da linha do trem. Acho que no telefone dava para escutar o barulho de um trem, mas talvez fosse apenas a televisão muito alta, não é mesmo? Havia roupas penduradas nos varais e roupas muito femininas que eu pensei serem suas e sonhei um pouquinho e me levantei para esticar as pernas e responder com uma piada à piada que me fizeram sobre nós dois. Somos assim tão risíveis?
E eu olhando pela janelinha do trem em todas as casinhas e janelas cheias de roupas coloridas, procurando você, não sabendo ao certo, àquela altura, se era aquilo que eu queria mesmo, digo, não sabendo ao certo se era você o que eu queria ou se era eu mesmo que eu me queria ou se era que o trem se espatifasse num túnel para você ir reconhecer meu corpo, a única testemunha de minha morte d’além-mar. Desculpe o pensamento mórbido. Você me conhece.
Quanto tempo o trem ficou parado e eu na janela? Uns quinze minutos, acho. Deu tempo para mais duas ou três piadinhas das quais eu, sem outra alternativa, ri. Num impulso sugeri que descêssemos e fossemos ter com você, que naquela hora passou a morar, por imposição minha, no segundo predinho à direita, naquela janela coberta com uma cortina amarela. Mas o medo foi maior. E o trem partindo me lembrou da música do Adoniran Barbosa. Daí os gregos entraram de novo na cabine, nos ofereceram comida, falaram qualquer coisa num inglês ininteligível e os predinhos foram ficando para trás, juntamente com você.