Nem tão usados. Nem tão velhos. Acabam de oferecer um Paulo Coelho agora no balcão do sebo. Pelo aspecto, lido na madrugada esotérica de hoje, adquirido na saída do trabalho pesado de ontem. Este e pilhas de outros passam como por um túnel do estado de novo para o de alfarrábio em poucas horas.
O livro era um bem durável, lembram? Lido, relido, emprestado várias vezes, deixava-se encapar para durar mais. Acompanhava o dono em suas andanças, ou permanecia em vigília nas bibliotecas que não paravam de ganhar mais uma prateleira em direção ao teto, ameaçando fechar as janelas para sempre. Acumular livros era mais ou menos como o lucro das instituições financeiras nos dias de hoje. As pessoas chegavam a ter um apartamento secundário para abrigar os que já impediam a circulação. Hoje é mercadoria tão perecível, que a sua data de validade nem se iguala aos meses ou anos de antecipação de suas campanhas publicitárias de pré-lançamento.
Em tempo de economia digital, tudo passa a requerer e-soluções. E-books conquistam e-leitores. É um tal de e-isto-e-aquilo, que o alfabeto se alvoroça. Apuros de inquietude tomam conta das letras. Todas ficam saindo atrás daquela fioritura, o rodopio envolvente da @, para entrar no ciclo do e-business e do e-commerce. Não há como ficar de fora do universo pontocom da moderna sociedade eletrônica, digo, e-sociedade.
Aquele tempo circunspecto de gestação de livros e idéias move-se agora na agilidade do disparo de um raio laser. Os autores despejam os seus pensamentos no espaço virtual de seus sites, e os leitores acompanham todos os seus meneios nas caixas domésticas de seus computadores. Tudo devassado, sem privacidade. Tempo hábil para revisão, maturação ou arrependimento não existe. Nada de papel. Nada de manuseio. Folhear…nem pensar. A escrita nem ocupa mais o suporte que um dia lhe foi devido. Com uma deletada, vai-se tudo, para dar passagem a mais navegação.
O viver fica bem demarcado. Há um jeito velho e um jeito novo de fazer as coisas. Como tudo fica velho logo depois de aparecer, o jeito mesmo é ir migrando, migrando para novas versões ainda nem bem estabelecidas, do tipo beta, top do novo, ficção comercial. Se alta velocidade e upgrade são inevitáveis, melhor relaxar, porque os chips mandam cada vez mais. Na era dos portais, não é mais admissível esconder-se atrás daquelas portas lerdas de dobradiças analógicas. O negócio é incrementar os acessos à grande rede para faturar mais em presença e design (visual). Quem não nasceu digital, não tem perfil para sobrevivência em portfólio de riscos competitivos.
É no balcão das casas de livros usados que passa a ponte entre épocas. Ali convivem fluxos de interesses diversos, alguns que até lembram práticas de modernidade explícita. Uns buscam o que não é mais editado – geralmente não encontram – ou o bem baratinho – que é bem próximo do de novo; outros desovam sacolas em trocas de vários por um ou, mesmo, os tostões de vários por nenhum. Tudo é muito engraçado. Se você leva um best-seller, o homem de trás do balcão lhe diz que é muito comum e não vale nada. Se oferece uma raridade, ele responde que não vende. Se levar uma obra-prima de valor permanente, ele diz que já a possui. Se você leva poucos exemplares, ele diz que só compra em grande quantidade. Se leva a grande quantidade, ele afirma que não está em fase de compra.
Então, você retorna para casa desapontado com a opressão do mercado. Pensa e pinça nas idéias aquela alternativa nobre de doar as suas leituras para uma biblioteca pública. Os burocratas da repartição dizem que não podem aceitar livros sem nota fiscal e licitação. Mostram-lhe um papel que regulamenta os critérios rígidos de doação: disponibilidade de espaço, bom estado de conservação, aprovação de um conselho e edições posteriores à reforma ortográfica de 1972.
Você descompensa, entra em depressão e escancara a sua indignação. Pega o monte de livros sem serventia e dirige-se para o lixo. Vem a empresa de limpeza urbana e ameaça multá-lo, alegando que não está a serviço de suas faxinas domésticas.
Por fim, em ato derradeiro, lembra uma instituição de caridade. Pega o telefone e liga. Eles alegam não dispor de recursos para o transporte.
Moral da história: se você resolver adaptar-se aos tempos globais, compactar e tornar portátil a vida, reciclar as camadas da sua história, nunca acerta; se ficar no passado, é um dinossauro que não entrou para o mercado cibernético.