Crônica

Gostavam de música. Daí não terem ficado surpresos com o encontro casual numa loja de discos no shopping. A surpresa fica por conta do tempo passado desde o último encontro, vinte anos antes. Cabelos grisalhos, a pele já um pouco cansada, outras formas nos respectivos corpos.
– Olá! Nunca poderia imaginar te encontrar aqui, ou melhor, sempre imaginei que um dia iria te encontrar numa loja de discos.
Ela sorri, enrubescida. Não conseguiu perder a graça tímida da adolescência, mesmo dois filhos, um casamento e uns tantos desgostos depois.
– E você? Sempre galante…
Ele sorri também, agradecido pelo brilho em seu olhar.
Depois percorrem a loja, mexem e ouvem músicas ‘daquele tempo’. Imagina, ela diz, que quase chorávamos ouvindo Ray Connif. E os boleros, as serenatas, a correria depois, para evitar a ira dos zelosos e ciumentos pais. Já ouviu Stealing Beauty? ele pergunta, é do filme do Bertolucci. Lembram-se dos piqueniques na fazenda, do primeiro beijo que se deram, do tímido roçar de mãos no escuro do cinema e da emoção contida até chegar em casa, sorriso estampado, o amor venceu outra vez. Riem juntos, como (parece) não o faziam desde há muito tempo, na hora de pedir pães de queijo e café expresso. Ela coloca muito açúcar no café forte, pensando consigo que não haveria nenhum problema em deixar o adoçante de lado, afinal até que estava em forma, considerando idade, etc.. Ele parece feliz, porém um pouco distante, talvez tímido. Ele era tímido, ela se lembra. E todos diziam. Tanto que só se beijaram a primeira vez graças aos esforços e estratégias criadas por ela, uma vez no portão de casa, depois da festa, preocupados com a possível aparição do irmão mais velho dela. Um tirano, riam-se, e ele dizia que – quando crescesse – aquele irmão ia ser ogre de histórias infantis. Será que ele se lembra disso? ela pensa enquanto pensa que sempre sonhou em ter momentos assim, leves, nunca possíveis pela vida que levava.
Num momento de silêncio entre risadas e recordações, ela repara com mais atenção nos cabelos grisalhos, nos ombros fortes, e também nas rugas começando a aparecer em seu rosto. Ele está bonito, pensa de novo. E preocupa-se com a certa inquietude projetada em seus olhares.
– Eu te amei muito naquele tempo, ele diz de repente, e ela novamente sente o rosto queimar.
Tantas noites sonhadas e só agora a frase reveladora. Lembra-se do dia triste em que ele partiu também triste. Mochila nas costas. Romance proibido sem nenhuma razão, ou por todas as razões desse mundo. A cidade agora ficou pequena para tantos desejos.
– Me fala da sua vida… ele diz num quase silêncio, voz macia.
Que vida? ela pensa. Casada com quem nunca quis, humilhada, quase estuprada, sem direitos mínimos, apenas a obrigação de parecer feliz, figura decorativa para a carreira de político medíocre do marido e dois filhos absolutamente chatos, machistas como o pai.
– Não tenho muito o que dizer! Casei, tive filhos, tenho uma vida normal, agora tenho uma boutique, de vez em quando venho fazer compras em São Paulo… acho que é só!
– E a vida? ele insiste…
– O que é a vida? Te amei sem poder ao menos dizer. Minhas grandes emoções só aconteceram em momentos tristes. A morte de não-sei-quem, as brigas conjugais, pensamentos e desejos contidos. E você?
Andando de carro pela tarde de sol, Lonely No More by Little Milton e mais uns tantos sons ora estranhos ora gostosos, trânsito, avenida Paulista, as pessoas apressadas (será que isso é a vida?), a conversa sobre livros, as histórias que marcaram, filmes, lembranças novamente.
Preciso ir, ela diz sem querer dizer.
Ele sorri triste. De novo? Você sempre irá embora? Fique hoje, mais um pouco.
Na realidade, nunca fui… (será que ele percebe isso?).
No apartamento de cobertura, incenso, uma vela acesa, fim de tarde, últimos raios de sol, taça de vinho gelado, Chet Baker/Just Friends e a entrega nunca antes sonhada sempre tão imaginada. No terraço, beijam-se tendo como cenário as primeiras luzes da noite e o som distante dos automóveis. Abraçam-se em silêncio, entre sons difusos.
Eu te amei muito naquele tempo.
Beijam-se, livram-se das roupas e dos medos, bocas roçam cada pedaço de cada corpo, chupam-se, lambem-se, fartam-se. Gostam de música e fazem amor como sempre quiseram, embebedam-se nos líquidos da paixão.
Me fode, ela diz de um jeito doce, enlaçando-se, agora sou sua, enquanto bebe cada gota de amor.
Depois sorri da ousadia. Nunca disse ‘me fode’. Que bom! Sempre quis ficar de quatro, não podia, isso é coisa de puta, também sempre me disseram. Que besteira! ela ri.
E choram juntos todo o amor tanto contido. Confissões, promessas. Sim, voltarei. Tanto tempo de sempre ter sido sua, sou mulher. Também te amei muito naquele tempo, apesar de não saber chorar, e pela primeira vez sinto o gosto do gozar por amor. Nua sob o edredon fala com carinho e ouve atenta a cada palavra. Mulher.
No táxi, voltando à vida normal(?), uma lágrima emoldura um sorriso, felicidade, cantarola uma canção, abre a janela, sente o vento da noite. Vou chegar de madrugada, pensa, talvez deva telefonar, inventar alguma desculpa. Recosta-se, pede para o motorista aumentar o volume do rádio, e decide não avisar nada.
Foda-se, pensa novamente, agora sou mulher!