Fora de Contexto

Acordei, hoje, com vontade de chorar. No vazio esporádico que me assalta a vida assim, aos solavancos, cada qual levando mais para perto do precipício sem, contudo, chegar lá.
A certeza do nada que sou calou fundo, hoje. Pior que isso, abri os olhos e não consegui distinguir meus horizontes, desaparecidos em uma névoa densa e pegajosa, tentáculos invisíveis no emaranhado uniforme e vazio das horas que vou engolindo, cheia da vida.
Só de mim é que sei, e muitas vezes nem isso. E sinto o quanto é difícil sentir-se quando o nada rodeia. Meu universo está leitoso, de um jeito uniforme e irritantemente branco, e é por esse labirinto invisível que circulo, às cegas.
Levei horas a revirar coisas velhas, à procura de algum resquício das certezas que minha mãe trazia, do cheiro adocicado dos cachimbos do meu avô, do tempo em que meu pai era um herói, dos latidos de Rex, o Pastor Alemão que chegou no final da minha infância, viu-me virar mulher e ir embora.
Fotografias, cartas, desenhos, cadernos repletos de poesia, amarelecidos pelo tempo e o esquecimento. Encontrei aquele primeiro, dos meus quinze anos, nascido ao mesmo tempo que o primeiro amor. Passaram-se quase vinte anos… Páginas e páginas de sonetos e trovas lidos com a pureza e encantamento da menina que nem sei em qual esquina seperdeu de mim. Tudo escrito à mão, na caligrafia trêmula do primeiro beijo no rosto, – que deleite! – e no descompasso do coração ainda criança.
As caixas que abri, os envelopes, os cadernos, tudo cheira a saudade de um tempo bom, que sempre o passado parece melhor que o hoje, sempre. O meu hoje está frio aqui dentro, onde me escondo… dói-me tanto passar mais um dia assim… até as lágrimas machucam quando brotam, ardidas, nos olhos, e são absorvidas pela pele.
Abri janelas e portas, afastei cortinas, levantei poeira para espantar demônios. Movi todos os objetos de um lugar a outro na estante, que é um mosaico colorido em meio ao dia monocromático de hoje. Espanei cristais, organizei os discos. Modifiquei a posição dos porta-retratos, substituí todas as fotos. O cactus no vaso parece mais forte do que eu, na verdura intensa que a aridez lhe oferta.
Juntei os panos que enfeitavam móveis. Brancos. Diversos. Guardanapos de croché, tecidos pelas mãos carinhosas de uma avó. Pequenas toalhas de linho pintadas pelas mãos de outra. Pedacinhos amorosos de vidas que acompanharão a minha, sempre. Juntei-os todos, num abraço com cheiro de pó.
Ao invés de enfiá-los na máquina de lavar, como sempre, vi-me enchendo um balde com água e sabão em pó. Mergulhei-os ali. E, incrível o que aconteceu depois: um grande plástico estendido no chão, lá fora, onde coloquei, um a um, os paninhos ensaboados, expostos ao sol forte de quase verão para quarar.
Pela primeira vez na vida fiz isso. Ensaboar os panos e colocá-los ao sol, para branquear. Não sei como, simplesmente aconteceu. Talvez porque hoje o passado veio fazer uma visita e trouxe ventos de hábitos extintos há décadas. Talvez porque eu carregue um pouco de cada vida que existe, já que tudo é comum a todos, às vezes apenas adormecido. Não sei.
Por algum processo misterioso ajoelhei-me na laje quente onde quaravam os guardanapos feitos pelas minhas avós, elas mesmas nunca tendo utilizado esse processo.
Esfreguei um deles entre as mãos, de leve, e só então ouvi o regato de águas cristalinas que escorria pelas pedras, reluzente, sob o sol. Levava o sabão dos panos embora, em desenhos disformes e cheios de bolhas. Água, vento e céu azul. Uma canção para embalar saudade de coisas que nem vivi.
Então recolhi os panos todos, espantada de mim pelo absurdo e falta de lógica. Joguei-os na máquina, liguei-a e vim para dentro de casa, recomposta. Passaram-se algumas horas, a tarde quase finda. Ainda fecho os olhos e o regato continua a correr, manso, dentro de mim. Despejo nele as fotografias, os poemas, o passado, enfim. Sento-me à sua margem, com os pés na água e o rosto na direção do vento, que entoa uma canção tristonha. Na TV anunciam a novela das seis.