É um dia qualquer de dezembro, pouca coisa a fazer na semana que se arrasta, sonolenta e rotineira. Olhos que voam longe através das grades da janela, muito além do céu azul sem nuvens e da mata que se espraia na colina logo à frente – atrás dela fica o aeroporto, por isso a impressão de que os aviões são engolidos pelo verde. Voam os olhos alados pela necessidade de infinito, imensidão, transbordamento das coisas insossas a que são obrigados a se ater enquanto o tempo não passa.
Um movimento, contudo, muito próximo, desvia a intenção do vôo para a terra firme, a poucos metros de distância. Um bando colorido de jovens alunos, a maioria vestindo bermuda, camiseta e chinelos. Todos de cabelos molhados, alguns protegidos dentro da sala de aula, pendurados na janela, os restantes a correr pelo gramado muito verde, de um lado a outro, numa perseguição implacável. Quando conseguem pegar alguém, parece execução. Uma nuvem deles se forma ao redor da vítima e só se vê farinha, braços, água, ovos. Depois liberam a criatura encharcada e imunda, em tal estado que fica impossível conter as gargalhadas.
Um homem engravatado passa ao largo, contra a parede, uma valise na mão esquerda. Apressa o passo, temeroso, olhos perscrutadores e andar vigoroso e preocupado. O risco de ser atingido por um balão de água perdido é grande, ele desaparece tão abruptamente quanto surgiu e talvez ninguém além de mim tenha notado sua passagem. É, faz mesmo um belo dia de sol. Um dia que ficará marcado na memória dos jovens lá fora para sempre, mas hoje eles ainda não sabem disso, apenas vivem o momento com toda a energia.
Alguns estão sentados na calçada, protegidos do sol forte. Conversam, riem, observam a guerra de balões de água. Mas há um silêncio mal disfarçado entre um riso e outro. O próprio riso tem um tom exagerado, da alegria que na verdade não sentem. Ainda sem o saber, passam pelo ritual que transforma crianças em adultos. Colegas em concorrentes.
Daqui a alguns dias estarão lado a lado disputando uma vaga na universidade. Depois será preciso estar entre os melhores da turma para ter alguma chance no mercado de trabalho. Não haverá mais controle dos seus passos na escola, nem chamadas aos pais quando o rendimento não for suficiente. Serão livres mas pressionados pela concorrência, responsáveis pela administração das próprias vidas. Eles ainda não sabem da saudade que vão sentir da diretora, do descompromisso com o tempo, dos cadernos rabiscados com corações e nomes… hoje são crianças felizes e assustadas e eu me sentia tão adulta naquele dia, meu deus!
No “meu tempo” foi a mesma festa. Começou de manhã cedo, com a turma toda indo à lanchonete gastar todo o dinheiro da “vaquinha” – feita para isso mesmo – em milk-shakes, sanduíches, chocolates, sorvetes. Depois voltamos à escola e os tubos de desodorante vagabundo foram desentocados dos esconderijos. E os ovos, pastas de dente, creolina (conheço pouca coisa mais fedorenta do que isso), vinagre, tinta, farinha, terra. A correria só acabou quando não restou ninguém limpo. Quando os olhos muito arregalados começaram a se olhar diferente e ficar enevoados. Quando, sob alegação de cansaço, baixou-se a guarda e a tristeza veio, e o medo. Saímos de cabeça baixa, sem olhar para trás, sabendo que havia encerrado uma etapa importante das nossas vidas. Não tínhamos mais uma escola para voltar no dia seguinte, nem a certeza de conseguir uma vaga na universidade. Um limbo provisório e assustador.
Preciso procurar a camiseta que usei naquele dia. Tenho gravados nela todos os nomes dos colegas, de próprio punho e a caneta. De repente isso me parece tão imprescindível…
De repente os olhos percebem o quão longe voaram enquanto estavam entretidos no movimento lá fora. Quantas pessoas estarão presenciando a mesma cena e em quantas delas se desencadeará o mesmo saudosismo de ter vivido um dia igualzinho a esse. Quantas vão deixar escapar uma lágrima de saudade dos amigos inseparáveis, dos quais hoje talvez nem lembrem os nomes? Que fim levaram? O que fizeram dos sonhos? O que a vida fez deles? Será que estão todos vivos, têm mulher, marido, filhos? Ah, Maria José, Gustavo, Luciano, Isabel, Geisa…
No meio da confusão vejo todos os filhos do mundo brincando entre os jovens lá fora. Todos os pais, avós que já viveram a mesma situação. Sinto que as escolas são permanentes na vida de todo o mundo. Âncoras provisórias. Recantos que abrigam sucessivos grupos. Não apenas os teatros possuem fantasmas, as escolas também têm os seus. Porque fica um pouco da alma de cada aluno que já passou por elas e jamais esquecerá do cheiro dos livros e cadernos, de pasta de dente, merenda molhada pelo suco na lancheira, couro das bolas, mofo da biblioteca, briga na saída.
O telefone toca e sou obrigada a voltar ao presente. Uma reunião em cinco minutos, com a gerência. Ah, olhos meus… por favor, não chorem agora!