De Manhã, Sem Assunto

Pra variar, hoje não tenho nenhuma idéia. Nada que me estimule a escrever.
Levantei cedo, engoli uma xícara de nescau com leite, e saí. Dei uma volta pela cidade. Faço isso quase todos os dias. De carro, que não sou de ferro e nem estou treinando pra nenhuma maratona.
O movimento nas ruas era o normal de uma terça-feira depois de feriado: gente parada nos pontos de ônibus, carros passando apressados, gente com cara ainda de ontem. Tudo na mais perfeita desarmonia, como sempre. Ainda há flores caídas nas ruas. Restos de finados.
Desviei dos buracos já meus conhecidos, tirei fininha dos habituais ciclistas e parei na banca de revistas. Comprei uma dessas que trazem todas as notícias da semana passada. Repeteco de tudo que já passou na tevê e do que deu nos jornais. O sujeito da banca, sempre com cara de sono. Entrei na padaria e pedi um café, um pingadinho escuro, e um pão com manteiga na chapa. O café estava frio e o pão com manteiga tinha gosto de bife. A gordinha da chapa tinha acabado de fazer um churrasquinho para um cara que estava almoçando o seu café da manhã. Sobrou, pro meu pão com manteiga, aquele gosto de bife de segunda, gosto de óleo de soja e cebola.
Hoje o dia começou assim. Espero que melhore. Está fazendo frio. Pleno mês de novembro. O dia está fechado. E eu estou sozinho, andando pelas ruas desta miséria de cidade.
Pior é que está tudo fechado, a vida só começa às nove. Com aquele barulho ruim, que agride e ofende os ouvidos, de bruscas portas de aço sendo levantadas.
Tudo normal, dentro dessa anormalidade. Ao menos, se estourasse uma briga, se houvesse um assalto, um incêndio, uma enchente…, a rotina se quebraria.
Mas, qual! Nada acontece de manhã, ninguém tem disposição pra brigar, os bandidos ainda curtem o assalto realizado na madrugada, os piromaníacos estão de folga, e não chove. Há semáforos enguiçados.
Observo uma moça que passa, seu cabelo está molhado, o jeito dela andar, o brilho escondido no olhar, os peitos projetados pra frente: essa acabou de trepar. Nem dúvida resta.
Olho outras: umas de olhos mortiços, outras um rito amargo na boca, os braços caídos, braços gordos, flácidos, cabelos sem vida, provavelmente lavados uma vez por semana: absoluta falta de homem. Ninguém exige nada delas: um batom vermelho, um brinco de pendurar, um jeito especial no cabelo, um andar atrevido. Ninguém a quem se dar.
Agora, observo andares, de homens e mulheres. Andares são reveladores, imagino. Veja aquela: rebolosa, passos nem curtos nem largos, um balanço promissor nas cadeiras; veja outra: andar macio, que reflete levemente nos ombros, os seios aninhados naquele sutiã sem alça tremem a cada passo, os bicos intumescidos, a mulher no ponto, madura, esperando a hora. Vejo mais uma: andar miúdo, pontas dos pés pra dentro, passos indecisos, sem ritmo, passista com prisão de ventre. Essa não tem a menor chance. Mais uma: de nariz empinado, farejando o ar, o traseiro arrebitado, as mãos de dedos compridos inquietas, os olhos vivos da necessidade, caçando de passagem, predadora contumaz. Os homens: uns lerdos, andar encurvado de velhos, andar gingado de malandro, andar apressado de quem quer ganhar dinheiro, o andar picadinho dos medrosos, andar sem acompanhamento de braços, de religiosos, o último botão da camisa apertando o gogó. Ainda há andares que ressoam na calçada, de botas de pretensos caubóis suburbanos, andares urgentes de tênis de gordos querendo perder peso, andares ritmados de safenados e hipertensos, de gente de meia idade, a multidão que morre de medo do infarto, do avc, circulando pela cidade, em grupos, vestindo agasalhos comprados nas Casas Pernambucanas, em três vezes sem juros.
Passo pela rua dos bancos e vejo a fila de aposentados. Matutinos. Esperando a hora de sacar o dinheiro do INSS. Esses gostam de filas. Os bancos mudam os horários, abrem mais cedo, reorganizam, mas nada adianta: eles chegam cada vez mais cedo. Alguns até dormem na fila. É o ponto de encontro deles. Onde a solidão se desfaz. Estão no seu meio.
Desisto da minha ronda diária, nada de novo, e continuo sem idéia nenhuma. Quem sabe, amanhã…