Marcos, o iluminado – parte 11

(VIAGEM MUITO DOIDA PELOS ANOS SESSENTA)

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O CASO AMOROSO DE RENATO COM A EMPREGADA
Foi mais ou menos em meados do ano que se deu o caso amoroso entre Renato e uma empregada doméstica que quase terminou em tragédia, deixando profundas seqüelas na sua psique. Devido ao temperamento irritadiço da mãe de Renato, as empregadas que contratava não ultrapassavam o primeiro mês de trabalho. A única exceção havia sido uma velhusca sem ter onde cair morta, contratada num momento de desespero e cujos súbitos achaques punham a família em polvorosa; mas a preta-velha era cozinheira de mão cheia e seus quitutes baianos aos domingos deixavam todos babando! Chegado, porém, o verão, a negra rezingueira criou um escarcéu: que seu ex-marido tinha lançado um feitiço, que exu e pomba-gira estavam em seu encalço, que não podia se distanciar da mãe-de-santo, de forma que a mãe de Renato acabou tendo de colocá-la no olho da rua. E a roda-viva recomeçou: primo, interiorana serelepe jurando dominar o trivial variado, mas que nem o trivial simples soube preparar direito, carregando no sal, deixando queimar a carne…; depois, portuguesa bigoduda de Trás-os-Montes, ex-cozinheira de banquetes, que quase levou a família à falência, tamanho o seu consumo de manteiga e queijo e champignons etc.; a empregada seguinte revelou-se uma ladra, mas a mãe de Renato, alertada pelo sumiço de algumas miudezas, despediu-a a tempo, antes que o desfalque atingisse maiores proporções; e, depois, veio a baianinha, que quase pôs o coração de Renato a pique.
Tinha boas referências a safada: trabalhara alguns anos em casa de uma família americana que acabara retornando para os Estados Unidos. Revelou à mãe de Renato não conhecer ninguém no Rio de Janeiro: única filha entre nove irmãos, nascera numa cidadezinha nos cafundós dos judas, quase divisa de Bahia e Sergipe; jamais revira os pais depois que viera para o Rio, sequer sabendo se ainda estavam vivos; não tinha namorado nem amigos e pediu para, nos dias de folga, ficar em casa, em seu quartinho, ao que a mãe de Renato aquiesceu, com a condição de que não ficasse “zanzando” pela casa, tirando a liberdade da família. Chamava-se Raimunda, mas não era feia de cara, posto fosse (no parecer de Renato) “boa de bunda”, para salvação da rima. Raimunda representava a síntese das três raças brasileiras: do branco, possuía a fineza de traços; do índio, a naturalidade; do negro, a pela morena. Nas horas vagas, gostava de ler fotonovelas e romances, preocupando a mãe de Renato, temerosa de que “afanasse” os livros da biblioteca do marido. “Hei de comer essa shikse custe o que custar”, deliberou Renato. Deparou, todavia, com alguns empecilhos: a mãe pouco saía de casa; Raimunda, quando não estava trabalhando, não saía do quarto; e, para piorar a situação, parecia impermeável aos olhares cobiçosos que Renato lhe lançava.
Até que, uma bela tarde, ao abrir o “tijolo” de matemática para revisar uns conceitos de trigonometria, eis que Renato encontra folhinha pautada de caderno espiral cuidadosamente dobrada em quatro, exalando leve fragrância de alfazema barata. Abre-a cheia de curiosidade. Encontra uma carta a ele destinada, escrita com letras garrafais de quem mal terminou o primário e eivada de erros ortográficos. Põe-se a lê-la:

Renato, meo amor, deisde que eu comessei a trabalhar na sua casa, eu não teinho mais socego, e meu corassão não para de palpitar! Renato, nunca penssei que pudesse ficar tão apaixonada. Cuando voce esta na eiscola e sua mãe manda eu arrumar o seu cuarto, eu fico rezando para aqueles momentos durarem para seimpre. Cuando arrumo sua cama e dobro suas roupas, sinto que vou desmaiar. Renato, você notou que sumiu a sua cueca azul? Não me leve a mau, mais não consegui rezistir. Renato, a sua mãe me disse que ela vai sair com seu pai hoje de noite e que vão voltar tarde. Eistou esperando você, meu amor, no meu cuarto. Beijos da sua Raimunda que muinto te quer.

Uma “mina” do cursinho de Afonso começou a lhe “dar ponto”: sorria-lhe, lançava-lhe olhares de viés, escrevia o nome dele dezenas de vezes nas folhas dos cadernos. Era uma das mais bonitinhas da turma e Afonso resolveu “dar em cima”. Além do mais, as “indiretas” do pai começavam a “torrar”. Chamava-se Cristina: tinha cabelos lisos e negros e a pele alva, como uma libanesa. Sem mais delongas, começaram um namorinho, com o recato típico da época.
A bem da verdade, Afonso nunca chegou a levar o namorico a sério: enxergava-o como mera convenção social, uma maneira prática de dispor de uma companhia para um eventual cinema. Pouco a pouco, vinha descobrindo ser dotado de uma sexualidade ilimitada, insaciável através de namoros tradicionais. E, por paradoxal que possa parecer, nas ocasiões em que retornou ao puteiro, saiu de lá decepcionado: o mecanicismo e mercenarismo do sexo cronometrado tampouco satisfizeram a sua libido. Como que por maquinação do diabo, os instintos desenfreados de Afonso acabaram encontrando escoadouro nas imoralidades praticadas na sauna perto de sua casa.
Paulatinamente, Afonso foi se familiarizando com os freqüentadores do “terceiro turno”, que se sucedia ao repórter Esso. O barbudinho que o abordara, por exemplo (e que, ao contrário do que imaginara, não era psicanalista e muito menos sociólogo, não passando de reles economista, que viria a ser um dos artífices do milagre brasileiro), era dos mais habituais: passava horas e horas espiando as pessoas acobertado pelo seu livro (agora, um romance de Jorge Amado), só se levantando para ir à sauna com alvo certo; sua especialidade era masturbar os colegas. No que tangia ao ator famoso, de cujo nome Afonso não conseguia se recordar, vinha à terma à procura de garotos. Dois ou três, aliás, eram freqüentadores quase diários, mas só faziam programas por dinheiro. Havia, finalmente, os corações solitários, à busca de parceiros para compromissos estáveis.
Não que Afonso se considerasse homossexual: tinha namorada, como todo mundo, e se imaginava futuramente casado e pai de vários filhos. Procurava, nos pequenos contactos dentro da sauna, o que as putas não conseguiam suprir: uma forma afável, cortês, carinhosa de dar vazão aos impulsos adolescentes. Seu raciocínio: entre bater punheta solitário em casa e deixar-se masturbar na sauna, antes a segunda alternativa, que permitia matar dois coelhos com uma só cajadada. Além de desfrutar o efeito salutar da sauna propriamente dita, praticava boa ação, satisfazendo o desejo de outrem. Elementar, não?

DEPOIS DA SÉRIA crise política que se seguiu ao adoecimento de Costa e Silva, chegando a ameaçar a unidade das forças armadas, em 30 de outubro de 1969, tomou posse como presidente da república o general Emílio Garrastazu Medici para exercer mandato de cinco anos. Gaúcho como o seu predecessor, militar de carreira, ex-chefe do Estado Maior do II Exército, adido militar em Washington no governo de Castelo Branco, depois chefe do SNI e, após receber sua quarta estrela, comandante do III Exército, presidiria a nação por um período de crescimento econômico a taxas ainda mais elevadas do que do governo civil de Juscelino Kubitschek, uma década antes. Distantes estavam os dias de inflação, corrupção política, agitação sindical e escassez de gêneros alimentícios, comuns no governo do duplo de latifundiário e líder populista, João Goulart. Foram anos de ufanismo, Brasil, ame-o ou deixe-o, alta recorde das bolsas de valores (seguida de crack), taxa média anual de crescimento do PIB superior a dez por cento (cifra que mais tarde se celebrizou como equivalendo à suposta “comissão” dos tecnocratas governamentais em grandes transações), inflação média anual de 17 por cento (embora o índice de 1973 tenha sofrido manipulação, conforme denúncia do Banco Mundial, cuja estimativa de 22,5% teve sua divulgação impedida pela censura), mar territorial de duzentas milhas (“Esse mar é meu…”), programa de integração social, planos de expansão telefônica, Transamazônica, televisão colorida… Artífice do “milagre brasileiro”: o brilhante economista paulista Antônio Delfim Netto, aos 38 anos de idade convidado, pelo presidente Costa e Silva, a assumir o Ministério da Fazenda, pasta em que foi mantido por Medici. Sua fórmula contrariava os “ortodoxos”, adeptos da política recessiva do FMI e os “populistas”, favoráveis a reformas estruturais com redistribuição de rendas. Resumia-se no binômio crescimento acelerado com inflação baixa: primeiro, deixar o bolo crescer para só então reparti-lo. Nova potência econômica parecia estar emergindo no hemisfério sul. A um preço alto, talvez: censura prévia dos órgãos de comunicação, telefones “grampeados”, opositores detidos e, nos porões dos órgãos de repressão, a prática crescente de torturas. A dívida externa crescia a níveis inéditos, atingindo cerca de 13 bilhões de dólares no final do mandato de Medici (segundo o ministro da fazenda, não havia o que temer, em vista do acelerado aumento das exportações e das reservas cambiais). Valia a pena pagar tal preço? Os pobres continuavam igualmente pobres. Para a classe média, entretanto, a perspectiva de trocar de carro anualmente, de viajar para a Argentina com o cruzeiro como moeda forte, de dar “tacadas” na Bolsa etc. parecia justificar a face obscura do regime. Além do mais (por que não admiti-lo?), os fins justificam os meios. Se a regra fora válida para a União Soviética (no parecer da esquerda), por que não aplicá-la à potência emergente da década de setenta, o Brasil? E, para final de conversa, a ditadura não se afigurava tão “dura” assim (alguns a intitulavam jocosamente de “democradura”): quem levasse vida “normal” de estudo ou trabalho, sem se meter a querer derrubar o regime, não era importunado. Longe estávamos do terror das “verdadeiras” ditaduras de Stalin, Hitler etc., que afetavam o dia-a-dia de cada cidadão.

O caso amoroso de Renato com a empregada Raimunda daria pano para as mangas. A carta de amor encontrada dentro do livro de matemática literalmente mexeu com Renato. Tinha plena consciência de se tratar (em jargão ídiche) de uma shikse, uma simples empregadinha doméstica, com a qual não poderia pretender se relacionar seriamente. Mas que se aproveitaria da situação para “comê-la”, disto não tinha dúvida. E, além do mais, Raimunda não era de se jogar fora. Naquela tarde, Renato não conseguiu permanecer mais de cinco minutos ininterruptos na escrivaninha: a todo momento, levantava-se para escovar os dentes, preocupado com o mau hálito, para untar os cabelos com “brilcreme”, para lavá-los novamente, achando que haviam ficado pastosos demais, para experimentar as camisas em frente ao espelho… Parecia o príncipe encantado às vésperas das bodas reais. À mesa do jantar, com a família, sentia-se exultante, dono de um segredo de que só a amada compartilhava. (Estaria se apaixonando pela shikse?) Demonstrava uma especial loquacidade, desfiando um rosário de novas anedotas.
– Sabe, pai, a diferença entre o Costa e Silva e o Garrastazu?
– Não.
– A burrice do Costa e Silva é incomensurável, enquanto a do Garrastazu Medici!
Ao que o Sr. Hermann aproveitou a deixa para explicar que, na Alemanha de Hitler, anedota daquele teor poderia levar ao campo de concentração:
– E esses estudantes baderneiros que, em vez de estudar, fazem passeata e atrapalham quem quer trabalhar, ainda acham que isto aqui é uma ditadura!
Deveriam ser deportados para Cuba para cortar cana…
Quando Raimunda, atendendo à sineta, veio servir a sobremesa, Renato, despido de qualquer timidez, lançou-lhe um olhar de galanteio digno de Humphrey Bogart numa produção noire dos anos quarenta. “Daqui a uma hora, essa tesuda será toda minha!”, pensou.
– Vocês têm programa hoje à noite, não é? – perguntou, temendo mudança de última hora.
– Sim – confirmou o pai, tranqüilizando o filho. – Temos torneio de bridge na casa dos Grün.
Renato sabia, pela experiência, que as partidas de bridge dificilmente terminavam antes da meia-noite, de sorte que teria bastante tempo pela frente. Finda a refeição, voltou a escovar os dentes, penteou novamente os cabelos, trocou de camisa e, enquanto aguardava (o coração aos saltos) a saída dos pais, “traçou” saquinho inteiro de amendoins para “dar mais tesão”. Ao, finalmente, ouvir o bater da porta de saída, correu célere para o bar, de onde “filou” dose de JB para aumentar a coragem. A seguir, postou-se à janela, só a abandonando ao divisar o automóvel dos pais dobrando a esquina.
– A barra, agora, está limpa para mim!
A morena Raimunda aguarda Renato no quartinho de empregada de calcinha e sutiã, deixando à mostra a delicada penugem acima do umbigo e as coxas grossas e bem torneadas e convidativas. Ao vislumbrar aquelas formas de garota travessa, Renato sente um frêmito por todo o corpo. De um instante para o outro, seu “pau” atinge proporções titânicas, parecendo envernizado. Teme gozar antes mesmo da “trepada”, mas consegue se controlar. A alcova recende a amor e pecado (contrastando com o puteiro, onde se mesclam cheiro de fêmea e de comida dos apartamentos vizinhos e dos machos lá anteriormente estados). Em poucos segundos, Renato está despido. Raimunda remove o sutiã e a calcinha. Em prelúdio ao ato, Renato mergulha o rosto na floresta peluda recém-revelada, explorando com a língua a vagina (o que, com putas, nunca ousou fazer). O cheiro redolente aumenta-lhe ainda mais a excitação. E Raimunda geme, embevecida: “ai… ai… ai…”, segurando-lhe o pênis. De repente, Renato tem um sobressalto: “pequepê, estou quase gozando!” Rápido como o raio, retira a mão de Raimunda de seu órgão genital e se levanta:
– Um minutinho só! – pede.
– Que que houve?
– Nada, não. Só um minutinho.
Passado o perigo, Renato volta à carga. Agora, abstém-se de piruetas, restringindo-se ao clássico “papai e mamãe”. O orgasmo, anteriormente contido, vem com carga redobrada. Ao sentir em seu imo a torrente viscosa, Raimunda sente-se frustrada:
– Já gozou?
– Já…
– Por que não esperou por mim?
– Mas você não me disse nada!
No colégio, alguns colegas de Renato se vangloriam de conseguir dar duas, três, quatro… em seguida. “Se eles podem, então também posso”, pensa. Em vão tenta a reprise: o pênis, satisfeito, se acomodou. Ao se lembrar da piada do português que se jactava de conseguir dar mil em seguida, ri sozinho.
No dia do jogo de bridge de seus pais na semana subseqüente, Renato encontrou no livro de matemática novo bilhete. Desta feita, mais lacônico e em linguajar menos romântico. Mais uma vez, atendeu ao convite. E, louvado seja Deus!, logram sincronizar os orgasmos. Semana após semana, as sessões de volúpia se sucederam e Renato se mostrou cada vez mais ousado. Da terceira vez, fizeram um sessenta e nove digno de revista de sacanagem. Da quarta, Raimunda pediu que Renato lhe comesse o ânus (aliás – observou Renato – um tanto escancarado, em se tratando de menina tão jovem e, conforme alegara, sem namorado). E tudo continuaria às mil maravilhas, a vida imitando a arte (das revistinhas eróticas), não fosse o desagradável episódio que, prezado leitor, passamos agora a narrar. Não, leitor afoito, Renato não foi pego pelos pais em flagrante, como você está imaginando. Foi pior!
Numa noite depois de um jantar em que dera mostras do pior dos humores, o Sr. Hermann chamou Renato para um canto.
– Preciso conversar com o senhor – resmungou e, sem maiores circunlóquios, revelou que a shikse havia reclamado com ele de ter sido engravidada por Renato. Até aí, tudo bem, não fosse o fato de ter exigido o reconhecimento da paternidade por Renato e o pagamento de uma pensão até que o filho atingisse 18 anos. “Com que cara”, queixou-se o Sr. Hermann, “vou enfrentar os amigos quando souberem que você teve um filho com uma schwarze?”
– Ela é morena e não schwarze – replicou Renato, imediatamente interrompido pela ira do pai.
– Cala este bico e deixa eu acabar de falar! – Contou que, inicialmente, fizera jogo duro, recusando-se a pagar a pensão. Mas a empregada ameaçara recorrer à justiça e infernizar a vida da família. O Sr. Hermann propusera, então, um aborto num ginecologista de confiança da família. Raimunda, porém, reagira indignada, dizendo-se católica fervorosa.
– Católica, nem aqui, nem na China – interrompeu Renato. – Tem cara mesmo de macumbeira…
Toda pessoa tem o seu preço, continuou o Sr. Hermann, e o de Raimunda revelara-se surpreendentemente baixo. Não precisara insistir muito: por uma quantia em cruzeiros não muito superior a quinhentos dólares mais as despesas médicas, Raimunda acedera em “retirar” a criança. Em suma, estava tudo equacionado.
– Era só o que faltava: – concluiu o pai – com tanto mulherão dando sopa, você foi logo se meter com a empregada! Graças a Deus, sua mãe não desconfia de nada, senão já teria tido um ataque.
O episódio, por pueril que pareça, deixou cicatrizes na alma de Renato. Por detrás das cartinhas e bilhetes repletos de paixão (que Renato, enfurecido, rasgou em mil e um pedacinhos), escondia-se o mais frio cálculo! Não era por seus dotes físicos que o coração da “filha da puta” palpitava, mas pelo dinheiro dos pais! Renato passou a se sentir mais solitário ainda – e feio. Começou a evitar os espelhos: desagradavam-lhe os cabelos crespos tão contrários à moda; as espinhas no rosto multiplicando-se como ervas daninhas; o corpo roliço impermeável às dietas… E suas mãos não cessavam de suar.