A Carlos Drummond,
pelo título emprestado…
Você sempre me conta histórias da sua vida- disse a mulher com ar distante- e hoje estou retribuindo com uma sobre a minha. Chamo-o secretamente de O caso do vestido. Sim, tomei emprestado o nome do poema de Drummond. Ele piscou na penumbra, quis ouvir. Ela anunciou um foi assim, a voz esquisita, uma secreta mágoa:
Eu tinha me separado e os tempos eram muito difíceis. Tinha me separado em agosto, e eu fora morar , com meus dois filhos, numa quitinete a que apelidáramos de “pequeniquete”, tempos duros demais, fazia contas no canhoto do talão de cheques, o dinheiro de meus três empregos não dava pra chegar ao fim do mês nunca, meu cheque especial explodia… o gerente me chamava e eu pedia adiantamentos aos patrões.
Ele riu, desajeitado. Era sempre um desajeitado.
Então, era dezembro e fui convidada para ser a paraninfa de uma turma de alunos da faculdade , alunos muito queridos, etc.
Fui comprar o vestido do baile em companhia de uma amiga, o marido podre de rico, ela tão sem-sal, uma ruiva sardenta e com o rosto cheio de marcas de espinhas. Era a secretária-executiva da faculdade onde eu trabalhava…
Ele piscou e levantou a sobrancelha direita.
Quando chegamos lá, começamos a ver os vestidos e eu me encantei com um preto, bordado com linha dourada, umas folhas e flores ,muito bonito. Perguntei pelo preço ( ah, a que ponto tinha chegado a minha pobreza, mas meus filhos tinham que comer e eu fazia contas, e mais contas, contas… usava alucinadamente a calculadora naquela época.), era tanto, me disse a vendedora.
Enquanto fui fazer as contas no canhoto, Hilda pegou o vestido ( ah, ela sabia ler meu olhar…) e disse: eu quero este, vou levar mais este e este também.
Fiquei quieta, era tempo de grandes humilhações aquele, nem sei por que me submeti, e me resolvi por um outro vestido preto, esquisito, uma última opção. Paguei em duas ou três vezes, acho, com os olhos cheios de lágrimas fiz os cheques pré-datados e me fui. Acabei indo ao baile com outra roupa, alugada, tal a raiva que me tomou pelo vestido comprado. Era o outro que eu tinha escolhido, os olhos compridos e mansos. Não… talvez o vestido, puxando o meu olhar, me escolhesse antes.
No fim do ano seguinte, Hilda estava separada, o marido fugira a trocara por outra secretária: a dele.
Estava na minha sala na faculdade, quando vejo Hilda entrar com uma sacola.
– Vim ver se você gostaria de comprar aquele vestido que escolhemos juntas no ano passado, lembra? Estou precisando de dinheiro( tirou o vestido da sacola, bandeira preta e dourada sendo desfraldada ,decerto imaginando dar-me um prêmio): olha, nem foi usado, está até com a etiqueta.
A mágoa podia ter transbordado naquele instante. Como eu guardara aquilo!Podia ter dito tanta coisa, conheço os meus dias terríveis de serpente…
Mas tomou-me uma espécie de dor, piedade, sei lá. Eu, bicho humano tão sem jeito para essas coisas.
Perguntei secamente pelo preço. Podia ter dito não, não quero, já não quero mais:
– Duzentos – me disse ela humilhada, os olhos pisados, vi mesmo ali um leve tremor de mãos?
– Pois eu sei que você está precisando, Hilda, lhe pago 400 ( eu tinha sido promovida, ganhava muito dinheiro sem precisar de nenhum marido… esta, a minha hora de serpente, meu deus?)
Fiz o cheque com desdém, confesso, e me desconheci assinando com letras largas , estendi com a mão esquerda. Agradeceu, se foi. Não levantei os olhos do teclado do computador.
O vestido ficou no armário dias, talvez semanas. Esquecido malvadamente, ah meus dias de serpente com olhos quase transparentes, a língua seca, hirta. Esquecidamente lembrado com fúria, deixei-o.
Uma noite, depois das aulas, abri o armário para guardar os livros e o vi..
Levei embora a sacola. Atravessei os corredores de cabeça baixa, o medo de ser surpreendida como em furto. Seria meu aquele vestido comprado um ano depois?
Cheguei em casa, tomei banho, lavei a cabeça.Estendi o vestido sobre a cama, olhei, passei a mão por toda a extensão do tecido, contornei os bordados em linha dourada… e, subitamente, peguei a tesoura na gaveta. Não tinha planejado aquilo, como pôde ser, então? Minha alma estava enfurecida, eu sei. Piquei o vestido, piquei, piquei e piquei. Em pedacinhos pequenos,compridos, quadrados, piquei e piquei até que ele fosse migalhas, nada, coisa alguma.
E depois abri a janela da sacadinha, eram quase duas da manhã. Coloquei pra ouvir a 9a. do Beethoven e joguei , de uma vez só, do 7o. andar, o vestido picado.
Era tarde demais para tê-lo. Eu não precisava mais dele.
Nunca mais sonhei com o tal vestido ( que me invadia os sonhos , na forma do objeto de desejo do inalcançável.)
Nunca me arrependi do que fiz.
E estou lhe contando isso porque guardei dele um único e pequeno pedaço, dentro do livro que estava lendo na ocasião.
Ontem, achei, sem querer, dentro de A náusea, do Sartre.
Tinha ido fumar lá fora, queimei com paciência,mas sem dor, o pedaço, me lembrando longamente da conversa: quanto é? Duzentos. Dou quatrocentos ah, serpente que sou, ah, brutal criatura entre criaturas…
Ele olhou-a inquieto, os lábios cerrados.
Era seda, disse-lhe bebendo água com gás e depositando o copo na bandeja devagar, bem devagar.
Mas eu não o queria mais. Às vezes machuca muito a seda, sabia? E diante da palidez dele, pegou a bolsa (onde estaria a tesoura?), pegou a bolsa e saiu sem fechar a porta.