O engraxate, lia sua revistinha amarrotada de mil leituras, suja de mil dedos, sentado em sua caixa, enquanto eu tentava lembrar das muitas imagens que desfilaram neste ano, diante do meu banco de praça. Aí, o velho e o menino, chegaram. O engraxate nem percebeu.
Licença?
O menino ajudou o velho a sentar-se. Paciente, segurou firme sua mão trêmula. A mão carcomida, enrugada, marcada, berrava contrastes com a mão rosada, lisinha, nova em folha do menino novo. O corpo cansado, demorou na manobra. Sentou-secom dificuldade. Disfarçadamente, espiei e descobri, com certo alívio que o tempo ainda teria muito trabalho para enrugar e manchar e carcomer as minhas mãos. O trabalho, contudo, estava indo bem.
Fiquem à vontade! Ajeitei-me um pouco mais para a ponta.
Depois que ambos se acomodaram, o menino irrequieto, olhava para todos os lados. O velho parecia cochilar. Cabeça abaixada, nada em volta despertava seu interesse.
Vô! Olha lá um patinete! Que legal! Sua mão tentava ajudar a voz, cutucando a perna do avô. É igualzinho ao que ganhei no Natal!
As pernas do menino, balançavam desencontradas. Os olhos espertos, rastreavam a redondeza na busca de atrações. A ponta dos pés, raspava de leve na calçada e o vovô parecia não ouvir nada.
Vô! Olha o sorvetão da menina! Puxa! Acho que quero um sorvete igual!
O avô não se comovia com os desejos do neto. Não reagia com os apelos das mãozinhas que a cada novo desejo, sacudiam o cansado vovô. Se o avô não dormia, fugia deliberadamente do esforço de resposta.
Por diversas vezes fiquei tentado a intervir, pela angústia que sempre sinto quando alguém fica sem resposta. Percebi que o menino não precisava delas e o velho já tinha dado todas e se cansara, enfadado que estava, de repeti-las ao longo dos anos.
Assim, fiquei observando a colorida movimentação da mente do neto, em contraposição com o monástico silêncio do imperturbável velhinho. Algumas vezes eu percebi reações na fisionomia. Um sorriso se posicionava na penumbra, entre o oculto e o perceptível. Uma inteligência marota, escondida propositadamente nas minúcias do sorrido fugidio, em troca de um sossego merecido.
Meu olhar já navegava distante, solto nas amadoras conjecturas sobre o que havia naquelas duas inteligências,monologando ao meu lado, quando fui trazido de volta ao porto.
Então, vô! O Marcelo incomodou muito? Acostumado com o silêncio, nem esperou resposta e o ajudou a se levantar.
Pai! Eu vi um patinete igualzinho ao meu. Vi também um sorvetão enorme! Eu queria um.
Você sempre quer e quer e quer. Veja o vô. Ele não quer mais nada e está muito bem…
E você, pai? O que você quer?
Os três foram se afastando lentamente para acompanhar o ritmo do mais velho. O pai tentava puxar o avô, quem sabe, para seu destino final. O menino, saltitava impaciente em volta, querendo andar mais do que o espaço permitia.
Espalhei-me novamente no meu banco, examinando a caminhada dos três. Daí, aconteceu uma coisa muito estranha.
Abaixei um pouco a cabeça para espiar o meu jornal por um instante e ao voltar meu olhar para os três, só pude ver o pai e o filho. Eles não pareciam se importar com o desaparecimento do velho. Achei esquisito. Olhei em volta, investigando sinais, e nada! Voltei meu olhar para os dois e não eram mais dois. Cheguei a me levantar do banco. Era só o menino que andava,saltitante, feliz, esperançoso, ávido de mundo. Examinei em volta e o pai havia literalmente sumido. Só restara aquele menino novinho em folha, caminhando para seu destino.
Sentei-me, meio cansado, enquanto o menino se embrenhava na multidão…
Viu o que aconteceu com os três que saíram há pouco daqui? Apelei para o engraxate.
Hei, vô! Tá pirando, é? Encarou-me aparvalhado.
O menino, o velho e depois o pai… Enfático, tentei explicar.
Acho que o senhor deu uma cochilada. Eu não vi ninguém no seu banco hoje… Sacudiu a cabeça, tal qual um sábio, e voltou a ler…
O jeito foi me voltar para o jornal. Começo a ler e vejo a notícia de que o velho Milênio está indo embora para sempre, junto com o senhor Século e para consolo de todos, o menino Ano, está chegando com toda a energia.