E a eternidade do homem, na Terra, traduz-se pelo que ele faz, marcando sua passagem, de forma indelével e notável, quando se trata de seres humanos predestinados aos grandes feitos.
Hoje, permito-me escrever algumas palavras de saudade, sobre um querido amigo e mestre, que conheci, há quase cinco décadas, na velha Biblioteca Municipal de São Paulo, na Praça Dom José Gaspar. Era sua casa, seu templo, sua pousada.
Não importa se nossas idéias nem sempre eram harmônicas, porque a vida é o bem mais precioso do ser humano, mas a vida sem liberdade não tem qualquer significado, nem dignidade. A liberdade, porém, não se confunde com a licenciosidade. O homem deve pensar, pode divergir, mas antes de tudo deve ser tolerante. Das idéias, nem sempre convergentes, brota a imensa variedade de pensamentos que norteiam a humanidade e lhe abrem o caminho da verdade.
Naquela época, São Paulo, terra da garoa, do frio gostoso, que tomava conta dos bandeirantes, nas noites de inverno, era uma cidade quase pacata, nenhuma poluição, conquanto lá tinha seus problemas, próprios de toda cidade que começava a inchar de gente que vinha de toda parte: da Europa, da Ásia, da África, enfim dos rincões mais distantes e também de todo o Brasil. Esse Brasil imenso, que guarda, em suas entranhas, toda riqueza do mundo, mas que paradoxalmente produzia filhos miseráveis e famintos. Povoava-se de gente que fugira do inferno que nem Dante imaginara. Da fome que nenhum homem jamais experimentara. Dos campos de concentração que jamais alguém pensara pudesse existir. Era o castigo na Terra. As labaredas queimando o ser humano como se fosse um monte de papel jogado fora. A maldade no seu mais elevado patamar.
Era gente que buscava um novo lar, uma nova vida, um pouquinho de paz, uma pitada de tolerância, um bocado de compreensão e, por que não, alguma solidariedade que lhe faltou no antigo berço. O Brasil era o lugar esplêndido que acolheu a todos, desde sempre. E São Paulo tinha tudo de que careciam os novos imigrantes ou migrantes. Até a ilusão de um paraíso perdido, lá longe, e que talvez pudesse recuperar no planalto paulista, onde as imensas fábricas sujavam as paredes e o céu com sua fumaça cinzenta e espessa, mas que se traduziam em mais empregos, vida mais confortável e melhor para os filhos, para a família, às vezes até partida, pela dor de uma guerra, da tragédia que despedaçou homens, mulheres e crianças, sem piedade, sem remorso, com muita dor.
Terminava a grande guerra que dizimou milhões de pessoas. O mundo ainda se ressentia dessa malvada empresa e parecia que o homem enfim poderia conceber uma Terra Prometida, sem guerras, sem violência, sem fome.
Pura ilusão. Nada do que o homem sonhou se realizou, naquela metade do século que se está apagando. Nem neste limiar do novo milênio, ainda molestado por tanta belicosidade e incompreensão.
Foi, naquele cenário, que conheci Maurício, rapaz pobre, esguio, às vezes triste, com o olhar longínquo em busca de algo que não conseguia alcançar. Não pudera estudar, em curso regular, como qualquer outro menino de sua idade, da classe média baixa, mas não deixava por menos. Estudava. Pesquisava. Meditava. Escrevia. Não dava trégua à sua inteligência aguçada, à sua imaginação fértil. Seu espírito inquieto e indomável conduzia-o para um universo até então desconhecido e, mergulhado nos livros, que lhe alimentavam a alma faminta e atiçava sua inteligência e a imaginação criadora, não se deixava dominar pelas adversidades. Pelo contrário, encontrava forças inesperadas e rompia o silêncio na busca desvairada da verdade, não importa onde estivesse. Foi um bravo, um lutador, um gigante, um exemplo de vida.
Nunca mais o vi, depois daquela convivência, por anos, na Biblioteca Mário de Andrade. Foram tempos de notável alegria, naquela silenciosa e acolhedora morada do saber, de aprendizado com o mestre que não necessitava de escolas ortodoxas, pois ele as tinha dentro de si.
Não obstante, acompanhava sua caminhada vitoriosa de grande mestre, que transmitia a seus discípulos e amigos o desejo de um mundo melhor, mais humano, menos tormentoso, e que insculpira para sempre seus ensinamentos que jamais se apagarão e servirão para os pósteros como bálsamo para as feridas do século que se vai.
Maurício não morreu. Vive para sempre em nossos corações. Os homens predestinados são eternos, porque têm a glória de marcar para sempre sua trajetória. A realidade visível e a realidade invisível coexistem, em plena harmonia, por isso que relembro as palavras de um grande sábio, que, com suma sabedoria e sensibilidade, proclamou: ” quando se planta uma semente, nunca se sabe até onde os brotos vão espalhar-se”. E, então, arremato que assim elas jamais perecerão!