Tenho uma mania besta por detalhes de pouca importância. Talvez seja uma doença, uma obsessão, sei lá. Provavelmente algum desvio grave de personalidade, ou alguma ligação essencial interrompida no cérebro.
O caso é que não vejo ninguém se preocupar com isso.
Por exemplo, nos filmes: não vejo o mocinho amarrar as rédeas do cavalo quando apeia e entra decidido no saloon, para limpar a goela com um trago. Ele simplesmente deixa o animal lá, apenas com a ponta do cabresto jogada sobre a trave, e o idiota do cavalo nem foge!
Assim como nunca vi, nos demais filmes, alguém trancar o carro e acionar o alarme, antes de largá-lo estacionado no meio-fio. Fizesse isso em São Paulo, ia embora pra casa a pé, mesmo que fosse uma paradinha de dez minutos pra comprar cigarro e tomar um expresso. Outra coisa que não vejo é o protagonista esperar o troco do táxi, sempre deixa uma bela gorjeta – Keep the change! acho que é assim que se diz. Os motoristas de táxi de filme na certa são todos milionários, tanto troco que ganham!
Não vejo, também, o casal de amantes se levantar pra escovar os dentes antes de fazer amor pela manhã. Partem direto pros beijos quentíssimos, assim que acordam. Não deve ser lá muito agradável, aquele bafo de morto dos quatro uísques tomados no jantar, afora o vinho e a carne grelhada, “saignante”, que comeram naquele restaurante romântico antes de ir pro hotel. Um detalhe: não vejo nunca nenhum dos dois pagar a conta! Ou em filme a comida é grátis?
Não vejo, ainda, ninguém terminar a bebida, a mais cara e fina que seja, toma-se um golinho e fica o resto intocado, sempre. Única bebida a que dão cabo é bourbon quando tomado à caubói, entornado direto no gorgomilo. Eu devo ser mesmo deseducado, bebo o vinho até ver o fundo da garrafa, especialmente se for um tinto daqueles de safra escolhida. Outra coisa: quando pagam é com uma moedinha atirada displicentemente sobre o balcão. Barato demais!
Mais uma: já prestou atenção aos telefones de filme ou novela? Nunca estão sem linha, jamais dá ocupado, as linhas não se cruzam, tampouco caem, a não ser que isso faça parte da trama. A Telefonica deles é eficientíssima! A distância da realidade é de uns tantos mil anos-luz. No mínimo.
Os celulares nunca ficam sem carga na bateria, estas têm duração ilimitada. Aliás, também nunca vi uma cena em que o sujeito tivesse a preocupação de deixar as baterias carregando, antes de dormir.
Cachorro não pára para aguar o poste nem fazer cocô no caminho. Conseguintemente (plagiando o Machado, que recente reli), ninguém pisa em cima de nada, exceto em Prêt-à-Porter. Eita vida bela!
Não se gasta tempo em trancar a porta do apartamento ao sair, a chave que enfiam na fechadura é sempre a certa, ignorando sem a menor cerimônia a Lei de Murphy, por mais chaves que existam no chaveiro. A lâmpada jamais se queima ao acender. Nunca falta água na torneira, nem papel higiênico no banheiro, não se apaga a luz ao sair. Jamais um bicho estranho na salada, o carro não enguiça no trânsito, a gasolina nunca acaba, e as balas do revólver multiplicam-se infinitamente, não dando chance nenhuma aos bandidos, que sempre acabam presos. O bem sempre vence e a justiça invariavelmente é feita.
Os táxis em grande número, mesmo no centro da cidade, na chuva, na hora do rush. Nos bancos não há fila, os funcionários, mesmo os públicos, são demais de atenciosos, preocupadíssimos com a qualidade do atendimento; o guarda rodoviário surge do nada, sempre atento, o uniforme impecável, e suas maneiras polidas, embora firme no cumprimento da lei, nunca exige, de jeito nenhum, um “cafezinho” pra esquecer a multa.
Não existe cena em que o vendedor tenha que consultar o cadastro da companhia do cartão de crédito antes de aceitá-lo, nenhuma na qual o sujeito olhe desconfiado para o cheque que o personagem emite. E nunca pede o número do telefone. Não há cena de abastecimento do carro no posto de gasolina, a menos que seja filme de assalto, de quinta categoria.
Só em comédia se vê um personagem ir ao banheiro e produzir ruídos fisiológicos inomináveis. Ao menos em filmes ditos “sérios” não se vê isso.
Surpreendente, no entanto, é o número de cenas em que o personagem aparece mijando em banheiro de aeroporto. Só aparece da cintura pra cima: urina, fazendo as expressões que variam do começo aflito ao alívio do final. Filosofa, sacode e guarda. Ou então, em filmes de ação ou espionagem, nos quais, não raramente, há um diálogo curto com o vizinho de necessidade, quase sempre um contato disfarçado. Não há a mesma cena no banheiro feminino, quando há é para retocar o batom. No cinema, mulher não urina.
Os isqueiros são infalíveis, mesmo que o vento uive e a chuva grossa caia. Os aviões não se atrasam. E, não sei se por obra divina ou por premeditação dos diretores, nos filmes não existem guardadores de carro. Eita vida linda!
Nas cenas de adeus há sempre um olhar perdido no horizonte, um olhar para o nada. Jamais vi isso na realidade.
Uma vez vi uma cena que certamente não estava no roteiro: era um filme de guerra civil mexicana. A certa altura a mocinha levava um tiro e agonizava. O protagonista, na cena clássica, a tinha nos braços e, num último gesto de amor, beijava-a desesperado. Ao se desapartarem lentamente do beijo de adeus, um fio de baba reluziu molemente na contraluz, pendendo da boca do herói até a da moribunda heroína, e se rompeu como que eliminando o último elo entre ambos. E ela morreu assim, babada. Realismo puro, ainda que por acaso.
O fato é que esta minha mania estúpida, de querer ver uma realidade cheia de detalhes desimportantes, não tem o menor sentido.
A vida, embora seja, no mais das vezes e em quase todo o seu tempo, preenchida com esses pormenores ridículos, só tem algum atrativo quando nos mostra suas facetas singulares, cenas fortes, inesperadas, vibrantes, terríveis, românticas ou aterradoras. Como nos filmes, novelas ou livros.
O resto é apenas sobrevivência, não tem graça nenhuma.
Não sei o bem o que quero dizer com isso tudo. Pode ser que aparente ser um queixume, coisa de gente ranzinza. Mas bem que a vida podia ser um tantinho parecida com um filme, ou vice-versa, caso o que peço seja impossível: que ao menos os filmes fossem um pouco mais realistas. Ideal seria uma média bem ponderada dos dois.
O leitor, já que veio até aqui, que tenha paciência, e fique à vontade, tire as suas próprias conclusões. Entretanto, não custa lembrar, de vez em quando, que a vida é como é, e filme, bem… filme é do jeito que querem que seja…