No Tiro-de-Guerra havia uma clara divisão entre os atiradores – que era como nos designavam; não soldados, mas “atiradores”. A grande maioria ainda sem barba decente na cara e nem sabia pegar numa arma ou sequer havia visto uma de perto – mas havia a separação nítida entre os que freqüentavam a turma da manhã, que estudavam, e os da noite, que trabalhavam. Os da manhã eram chamados pelos da noite de “pós-de-arroz”, os da noite eram os “fodidos”, de categoria social inferior, segundo os da manhã. E assim ia a rivalidade, o ano inteiro. Os dois sargentões que davam as instruções, de certa forma fomentavam a antipatia mútua entre as companhias promovendo competições onde a força bruta contava.
No início do ano era feita a escolha entre os recos, que já se apresentavam de crina devidamente tosada, farda nova, coturno engraxado, todos prosas, achando-se muito homens. Mal sabiam o que os esperava. Quem queria ou precisava ir para a noite, quem queria ou precisava ficar na turma da manhã, se candidatava. Quem era datilógrafo, quem era isso ou aquilo, qualquer habilidade que pudesse livrá-lo das instruções; era todo mundo se apegando em alguma coisa para escapar do exercício pesado. Ninguém queria saber de pátria amada, idolatrada, salve, salve, civismo, bandeira desfraldada, o caralho. Nenhuma prática de combate, nada de papo de guerra, táticas, estratégia, o cacete. Os que estudavam, presumindo-se que fossem alfabetizados, recebiam de cara a patente de cabo, para o único efeito de comandar a guarda à noite e nos fins de semana no prédio do TG, com a missão de zelar pelo patrimônio, pela velharia das armas – fuzis da guerra do Paraguai, suponho, quase todos sem ferrolho, só pra fingir de soldado no 7 de Setembro, mais nada. Era uma merda ser responsável pela bagunça que os caras aprontavam; eles não respeitavam ninguém a não ser o sargentão truculento. Eram quatro de guarda e um cabo para encher o livro de ocorrências, e ai dele se dedasse um dos guardas. O cabo se fodia entre dois fogos, de um lado os colegas de farda aprontando e ele maneirando pra não dar rolo; do outro o sargento que chegava na surdina, na banguela da lambreta, silencioso, pra pegar a turma no flagra tentando enfiar alguma putinha pra dentro da guarita – incrível como puta adora farda, mesmo sendo de atirador de araque. Era um sufoco ser cabo, punição em dobro por conta da mais simples irregularidade. Questão de responsabilidade.
Me lembro vagamente da turma, 160 homens-garotos: Darba, que morreu há uns tempos; Jacaré, um gordão que seria tranqüilamente dispensado por excesso de banha, mas implorara para servir, o panaca! Paulão, o mais alto, espigado, portanto porta-bandeira do Tiro; Meia-meia, Pedro, Cavalo, Bochecha, Mané; Vô, o de precoce cabelo branco; o Coisa, polaco de nome tão cheio de dáblios, zês e ipsilones que virou “coisa”; Acácio, Beto, Zebu, Souza Ramos, que morreu num acidente de carro; um que tá preso e não me lembro do nome; outro que sempre vejo, mas finge que não me conhece; um que o pai era rico e tinha um aero-willys; outro que era tão duro que a gente fazia vaquinha pra ele poder comprar gilete; um que não sabia marchar – balançava o braço do mesmo lado da perna, parecia um boneco; dizem que girafa e camelo, ou dromedário, sei lá, também andam assim. Teve um dia que o sargento mandou amarrar um bambu de cada lado nos braços dele e de um outro, pra forçá-lo a movimentar corretamente os braços. Não adiantou, enquanto amarrado fazia direito, solto andava do mesmo jeito de antes, marionetando desajeitado. O sargento esbravejava, o cara chorava humilhado. Por fim, o sargento desistiu, disse que aquilo era problema mental, de hemisfério do cérebro e tal, caso perdido, portanto. E largou mão, mas virava e mexia punia o cara por nada.
Aula de armamento: desmontar o fuzil e montá-lo de olho vendado, rapidinho, como se estivesse no escuro, no mato, cercado pelos inimigos e a porra da arma enguiçada. Quem não conseguisse fazer isso não se formava, ficava já convocado pro ano seguinte. Era um saco, tinha gente que não havia como, e quanto mais o sargento gritava, mais sobravam peças, mais complicava. No fim dava-se um jeito, aliviava a pressão, mesmo porque era tudo de mentirinha o combate. Sessão de tiro no Morro do Sabão: cada um dava 25 tiros num alvo que era uma barbada, como se o japonês inimigo estivesse dormindo e a gente metendo bala no desinfeliz. Mas havia quem não acertasse nem o barranco, cagava-se de medo do estouro do 7mm, o coice violento da coronha no ombro, o sargento xingando de marica, putaquepariu! Desse jeito o inimigo, antes de te matar, ainda come o seu rabo, seu merda!
Marcha, 36 km a pé, no inverno, à noite, pelo mato, virando morro, pulando valas, rastejando feito um lagarto, nada de cigarro porque o inimigo podia ver a brasa de longe, nada de água, nada de nada, só andar abaixado feito uma legião de corcundas, a cara pintada de preto, cercas arame farpado rasgando a carne. Os pós-de-arroz levavam chocolate quente no cantil, os fodidos levavam pinga, conhaque, rum. O sargento, quando pegava o truque na inspeção, gozava o fulano – mamãezinha mandou pro filhinho?- ironizava, e virava tudo no chão – seu puto, cantil é pra água, e quando eu autorizar! E tome guarda pra aprender a ser homem! Quando pegava pinga, tomava um gole fundo, rodava na boca, dava um esporro bem dado na gente, e ficava com o cantil para ele.
No desfile de 7 de Setembro a gente saía impoluto, os maiores defensores da pátria, farda no capricho, coturno brilhando, fuzil reluzindo a baioneta, peito pra fora, companhia, em forma! Ombro arma, em frente, marche! O sargentão desferindo ordens como pedradas. E a gente saía na cadência de 120, os mais altos na frente, nanicos fechando na rabeira, sempre perdendo o passo dos mais compridos, um pulinho pra acertar; batendo o pé direito com força, a troco de nada.
Fim de ano, festa de formatura, todos perfilados recebendo o certificado, chega de brincar de soldado. Adíos sargentão filhadaputa, até nunca.
Domingo que vem faz 35 anos disso tudo, haverá até um churrasco. Quantos ainda estarão vivos?