Dona Maria

Tarde silenciosa e solitária. Eu a esperar alunos que não sei se virão: um canto chega manso em forma de oração.
Lindo, lindo, vinha modulado. Cada nota dessas ondas penetrava pelos meus poros. Aninhava-se dentro de mim.
Não prestava atenção na letra, a voz não permitia. Era forte, de contralto. Um tom de voz raro no Brasil. Já me disseram que isso tem a ver com o clima.
Concentrei-me no canto, ele vinha pelos corredores ao meu encontro.
Num dado momento a voz se transmudava em instrumento refinado, um assobio, era divino como Bach.
E o espaço que – a cada 45 minutos, das sete da manhã até a uma hora da tarde – é um rotineiro corredor polonês, uma verdadeira geral do Morumbi em dia de combate do Corínthians e Palmeiras, vira palco da dona Maria.
Seus amigos de trabalho sempre pedem para que ela cante. Eles gostam, sentem-se tranqüilos. E ela canta e me tranqüiliza… Ela canta e torna minha espera um deleite e eu quase torço para que meus pupilos não cheguem…
Ela cantava desde os tempos em que vivia em Catende, no meio das cabras, nos partidos de mandioca, maxixes e quiabos.
Ela cantava para seus nove irmãos. Era a mais velha das filhas e o pai a prendia em casa. Mas toda a vizinhança se admirava com sua desmedida alegria e não havia um ser vivente que não se enlevasse, quando ela danava a soltar a voz. Às vezes um deles dizia:
– Te aquieta Maria, pois os vaqueiros pararam na estrada e tão te ouvindo.
A pequena Maria, embora ainda não fosse dona, mas muito dona de si, dizia:
– Mas tá que vou me aquietá! Eu vou é cantá e quem tem orelhas que as tape ou escute minha cantoria!
Casou-se aos 22 anos e continuou cantando para os seus 11 filhos que se criaram. Quatro deles se dissolveram em sangue, antes de terem tido a sorte de ouvir seu louvor.
O marido se acostumou, as 11 crianças, às vezes pediam para que ela se silenciasse para eles ouvirem o som da televisão. Ela nas poucas horas que blasfemava dizia:
– Vocês querem por banca até na minha garganta?
Um dia o filho de 15 anos nunca mais ouviu o canto da mãe. Era trabalhador, estudava à noite. Comprava presente para Dona Maria. Era muito querido pelavizinhança, quando se engraçou pela rapariga do balcão da padaria.
O português da padaria descarregou seu ciúme no ouvinte predileto de Dona Maria. Nesse dia, na casa simples de 400 reais por mês, ninguém ouviu o canto de Dona Maria. Fez-se silêncio. E durante algum tempo ela chorou.
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– Dona Maria… como a senhora canta bonito!
– Eu minha filha?
– É, Dona Maria, a senhora! A senhora canta e faz a gente descansar, entrar em estado de contemplação, dá vontade de orar.
– Ah, menina! Nos meus tempos de mocinha eu parecia uma sereia, mas desde que um dos meus meninos morreu, meus cantos agora são só lamentos…
Minhas alunas chegam. Três, todas do terceiro B, nenhuma delas necessitam de aulas de reposição. Todas são boas alunas, todas são boas ouvintes.
Despeço-me da prosa boa de Dona Maria.
Entro na sala, convido minhas ouvintes para apreciarem a música de Dona Maria.
Enquanto isso, minha cantora lírica do sertão de Pernambuco, limpa os banheiros empestados do cheiro de cigarro e vômito de adolescentes que pitam em cubículo….
Dona Maria canta e sonha com o curso de computação para sua filha. A menina fez 18 anos, viu um emprego de balconista que precisa saber mexer naquele tal de computador. A mocinha, quer comprar batom vermelho, quer comprar vestido novo, quer ficar bonita.