Companheiros de Viagem

Era a última vez que viajava naquela linha. Era a última que viajava. A última. Demais fatigante cada manhã, naquela hora, com qualquer tempo, abandonar o seu ninho, a sua covilinha ­ como costumava chamar à sua pequena casa -, para trasladar-se ao escritório, onde jovens e ordenadores sobrapuxavam-no em cada operação. Grande coisa a jubilação adiantada: ou, talvez, não, não estava tão feliz. Porém, aquela manhã decidira de lhe falar. Se sentaria frente a ela e perguntaria-lho. Acaso enlouqueceria. Talvez chorava. Mas, finalmente, perguntaria-lho, por que. Veia-a cada manhã, todos os dias exceto os festivos, à mesma hora.
Cresceram juntos, tinha-o compreendido, mesmo quando menino, não se dera conta disso. Acaso era aquela menina que uma vez olhara-o suavemente, e ele tinha crido que ela cobiçasse o seu sorvete. Se guardara bem de o partilhar com ela.
E podia ter sido sempre ela, aquela rapariga que sorria em volta dele, como no seu último dia de trabalho ­ sim, tinha que ser a mesma pessoa, com aquela mesma ruga para abaixo, no lado esquerdo, ligeiramente irônica ­ e que o fizera enrubescer-se, quem sabe por que, frente à meia classe, de viagem com os professores. Fixara na cara dele o seu olhar, sem o baixar, ela, no entanto que ele tinha baixado e levantado a cabeça infindas vezes, sempre mais vergonhoso.
Envelheceram juntos, ano atrás de ano. Por cada cabelo branco dele, ela tingira-se um cabelo próprio, antes de preto; logo, menos mimosamente, de gris prateado; enfim, com serena resignação, de branco marmóreo. As rugas se difundiram na cara deles com lentidão geológica, como preguiçosas mas bem resolutas fendas num cristal sujeito a uma pressão ligeira e a um peso ­ o da idade ­ constantes no tempo. Um cartógrafo louco poderia averiguar a simetria das rugas dele com as dela, e quiçá descobrira que aquelas linhas, unidas, representavam o mapa do universo, ou a árvore genealógica da humanidade, monos incluídos.
Falaria-lhe, oh, lhe contaria do seu último dia, da sua angústia, da sua mulher Tea que partira uma manhã de verão, durante o sono, sem sofrer, tendo-o ternamente por mão, como para lhe dar consolação. Diria-lhe dos seus gatos, quatro, velhinhos também, que o esperavam cada tarde para reclamar a legítima comida. Quantas coisas queria lhe contar, que nunca tivera a coragem de lhe dizer, porque incapaz de começar uma conversação. Todavia, ela parecia encorajá-lo. Não, não de uma maneira coquete, por caridade, sempre tinha aquele olhar gentil, benévolo, e aquele sorriso, quantas vezes estudara-a ele, procurando interpretar o seu códice cifrado, aquele sorriso tão doce, sobre aqueles lábios já encrespados pela brisa do tempo, mas bem tendidos com imutável graça na face, se bem que cada dia menos florescente.
Aquela manhã, já velho e cansado, encontrou a coragem de sentar-se frente a ela. De a mirar fixo nos olhos pretos como a noite polar. De lhe perguntar, finalmente, por que. Por que sempre sorrira-lhe.
Sentou-se. Mirou-a nos olhos, mas não teve tempo de falar. Sem acabar com seu sorriso, antes, acaso acentuando um pouco mais aquela ruga para abaixo, à esquerda, ela explicou-lhe aquele por que, plácida, segura, carinhosa: estava esperando-te, Lorenzo (como sabia o seu nome, o seu nome anagráfico, quando todos, a sua mulher também, sempre trataram-no de Renzo?). Fizeste-me fatigar, sabes, em todos estes anos, primeiro as escolas, depois o trabalho. Demais fatigante cada manhã, nesta hora, com qualquer tempo, abandonar minha covilinha ­ sim, eu também denomino-a assim -, entrar neste trem, ver-te, sorrir-te, encorajar-te a viver. Eu também posso finalmente ser jubilada, porém quero dizer- te que sinto-o: foi bonito ver-te crescer, viver, envelhecer contigo, ler-te na cara todas estas coisas lindas e tristes que te andavam ocorrendo no curso dos anos, teu amor pela tua mulher, a tua dor quando deixou-te, o teu carinho pelos teus gatinhos – quatro, é verdade? ­ e tudo o demais. Agora podemos irmos juntos, agora é que é possível. É o teu último dia, Lorenzo, não podes me dizer ainda que não, deixar-me aqui como sempre, no meu assento a te sorrir e a te ver sair para ir ao trabalho, ou voltar à casa. Esperei-te por todo este tempo, até hoje, meu último dia de trabalho, como o teu. Hoje não podes me dizer que não.
Olhou-o fixo com os seus olhos de carvão e acercou-se-lhe lentamente, com a delicadeza que ele sempre lhe imaginara, em vê-la sentada assim dignamente, de jovem como de já velha. Agora olhava-a de perto: era uma velha, como ele, porém os lábios não, os lábios que se acercavam aos dele mantinham a frescura e a tensão agraciada dos anos juvenis. Depois da morte da esposa, nunca mais ele beijara na boca à nenhuma outra mulher. Não experimentou novamente a emoção dos primeiros beijos, a frenesi dos trocados aos vinte anos, a lentidão sagaz dos beijos já maduros, nem a habitual falta de sensações dos já raros da idade senil. Sentiu o frio dos lábios de Tea antes de desaparecer no féretro, mas não se despegou de ela. Encorajado e confortado por aquela recordação, tomou-lhe delicadamente ambas as mãos esqueléticas e apertou-as forte, fechando os olhos.
Vittorio Caratozzolo
MACUNAIMA@t-online.de
Vittorio Caratozzolo é professor, italiano e reside atualmente na Suécia, onde trabalha e escreve. É o único tradutor de Gil Vicente, dramaturgo humanista português, para o italiano contemporâneo.

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