Penso ser essa a primeira vez que escrevo uma crônica no avião. E sei que não deveria escrever. Pode parecer pernóstico falar de algo que não é comum a todos. Poderiam achar que estou olhando a vida por um prisma superior… sei lá. Mas também não queria começar um texto me desculpando. Essa não é a melhor forma. Queria apenas comentar esse passar de coisas, essa vida que acontece aqui em cima sob o meu olhar de cartão postal. Roda-se num plano inclinado e vão aparecendo azuis. Azul no céu e na terra. Entre eles, nuvens algodoadas brindam meu olhar com uma suave arquitetura. Seria impressionismo? Se eu fosse criança, com certeza encontraria formas fantásticas como as de um carneirinho ou de uma velhinha fazendo tricô. Mas meu olhar de esfinge oca pouco decifra e pouco é decifrado. Fico mesmo é pensando nos aspectos dilacerados do partir e do chegar, da ansiedade prévia e da saudade depois. O que a gente faz com a saudade? Tento amarrar os momentos, organizar as emoções, agregar os fragmentos para chegar ao perdurável, mas sei que tudo ficará disperso. Tudo não passa de uma viagem. Não é isso a vida? No fundo somos viajantes invisíveis desbravando a eternidade por estranhas atmosferas. Uma atmosfera pura, bem aqui do lado de fora dessa janela redonda e eu nem posso tocá-la. Mas sei que existe, porque a vejo nesse infinito sem caminhos. E, se eu pudesse saltar daqui agora, provavelmente, morreria de solidão. Que vazio meu Deus!
Olho para o passageiro sentado ao meu lado. O olhar fixo em algum ponto da aeronave denuncia que ele também pode estar com a alma viajando. Que incongruência! Por que o corpo e a alma não podem viajar juntos? Parece forçoso arriscar um primeiro contato. Agora ele faz de conta que dorme. Talvez por timidez, ou pra ouvir o que acontece sem tomar parte, como se fosse invisível. Mas ouvir o quê? As pessoas mal falam umas com as outras. A maioria finge dormir, ou talvez estejam mesmo dormindo. Sei como é essa obrigação de sorrir, de fazer um cumprimento ou de trocar duas ou três palavras com respeito à viagem. Ainda assim, arrisco. Percebo que ele me olha de esguelha com os olhos semicerrados, então aventuro um comentário: vôo calmo, não?! Ele levanta a cabeça calmamente e como se examinasse o meu rosto, responde: “I don’t speak português”.
Oh my God! O que eu fui fazer!? “Sorry to bother you” falo num inglês carregado.
Ele se interessa a conversar, achando que encontrou alguém que fala sua língua. Só que depois dos “Where are you from?” a coisa fica difícil. Respondo com “That’s great”, “Ok” e assim por diante. Mas ele quer saber mais. Pergunta o que escrevo, por que escrevo e me oferece o seu microcomputador. Aliás, micro não, minúsculo. “That’s incredible!” Ora, estou pensando em inglês. Disfarço a surpresa. Já tinha visto esses portáteis antes, pela TV, claro. Agradeço e sou salva pela voz da aeromoça, que não é mais aeromoça (que palavra antiga) é comissária de bordo, pedindo para que nos preparemos para o pouso pois já estava previsto no trajeto uma conexão. Isso me lembra tubo de PVC, operários, construção…. me lembra terra. O americano se despede e me oferece uma caneta. Dessa vez aceito.
Mais uma lembrança para eu guardar, mais uma coincidência. Com certeza vou olhar muitas vezes para esse pequeno objeto e me lembrar que um dia, por um momento, os nossos destino estiveram unidos num mesmo planeta, num mesmo tempo e espaço. E por um momento olhamos na mesma direção, tivemos um mesmo rumo, um mesmo medo… e embora não tenha havido oportunidade para nos conhecermos, sabemos que os nossos caminhos, por um momento, estiveram entrelaçados nessa viagem que se chama vida.