(VIAGEM MUITO DOIDA, BICHO, PELOS ANOS SESSENTA)
Capítulo Final
ILUMINAÇÃO DE MARCOS
Copa do Mundo de 1970. Noventa milhões em ação, pra frente Brasil, salve a seleção! A Copa seria, pela primeira vez, televisionada ao vivo. Se ganhássemos o tri, traríamos a Jules Rimet definitivamente para o nosso solo. O fiasco de 1966 ainda não se apagara de todo de nossa memória. Agora, porém, contávamos com escrete só de craques, em ritmo de Brasil grande. À medida que os jogos se sucediam, aumentava a emoção! Durante cada partida, formávamos uma “corrente pra frente” de noventa milhões, olhos grudados nas telas das tevês: nos lares, quartéis, hospitais, prisões, botequins. As metrópoles transformavam-se em cidades-fantasma, as ruas e avenidas vazias de automóveis. Acompanhar a Copa era dever sacrossanto de todo brasileiro. A cada vez que o juiz apitava o final de uma partida, a situação se invertia: todos afluíamos às ruas, gritando, chorando, soltando rojões, buzinando, numa patriótica cacofonia. E o chope rolava farto. BRASIL! BRASIL! E ganhamos da Checoslováquia (moleza!), da Inglaterra (jogo duro!), da Romênia, do Peru, do Uruguai (foi a forra de 1950). Na finalíssima, houve coração que não resistiu. Brasil e Itália, jogão! Demos um banho de quatro a um! Teve até olé! Olé! Aleguá! BRASIL TRICAMPEÃO! Com brasileiro não há quem possa! Ninguém segura este país!
Em outubro de 1968, a VPR seqüestrou o capitão norte-americano Charles Chandler e o “justiçou”, num tribunal do povo, por crimes de guerra no Vietnã. Em julho de 1969, “desapropriou” o cofre que abrigava a fortuna de Adhemar de Barros, escondido em casa de uma amante. Em setembro do mesmo ano, a ALN e o MR-8 seqüestraram o embaixador norte-americano Charles Elbrick, trocado por 15 presos políticos. Em março de 1970, o cônsul-geral japonês, Nobuo Okuchi, foi seqüestrado e permutado por cinco presos políticos. O PC do B começou, paulatinamente, a infiltrar militantes entre os camponeses do Araguaia, com a finalidade de desencadear uma guerra de guerrilha. De sucesso em sucesso, as forças democráticas e progressistas consolidavam-se cada vez mais. Ações espetaculares foram programadas para o mês da Copa do Mundo, com o fito de desmascarar a ditadura e pôr a nu o descontentamento das massas. Ativistas da VRP preparavam o seqüestro do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, pelo qual pediriam a cifra recorde de quarenta companheiros libertados e a leitura de um manifesto em cadeia de rádio e televisão. A organização de que Chico/Daniel participava, por sua vez, planejava ação ainda mais espetacular: enviar comando ao México para, no dia da final da Copa, durante a volta olímpica (supondo-se que o Brasil ganhasse), invadir o gramado com imensa faixa de repúdio à ditadura. O mundo inteiro assistiria, pela televisão, ao ato de protesto. Naquele apartamento com aspecto de república estudantil na aprazível rua do Jardim Botânico, * a “ordem do dia” da reunião que se iniciaria era exatamente a discussão detalhada dessa operação.
Ao longe, ouvia-se o Simonal, em algum rádio: “Moro, num país tropical, abençoado por Deus, e bonito por natureza…” Entretanto, algo não cheirava bem para Chico. Bom fisionomista, não lhe restava dúvida de que o companheiro de cabelos grisalhos era o médico que o examinara ao se apresentar para o serviço militar. Seria um irmão gêmeo? Um sósia? Teriam as forças de segurança se infiltrado no aparelho? Seriam eles detidos? Torturados? O que fazer? Alertar os companheiros? Os regulamentos da organização eram claros quanto aos procedimentos: suspeitas de infiltração deviam ser imediatamente comunicadas ao líder. Uma investigação era, então, secretamente conduzida e, caso o suspeito se revelasse um agente de segurança, era “justiçado”.
No decorrer da reunião, o companheiro de cabelos grisalhos pareceu o mais empolgado com a ação planejada para o final da Copa do Mundo, chegando a se oferecer para viajar ao México. Houve momentos em que Chico acreditou estar enganado. Mas – prezado leitor – não o estava! Foi o que viria a descobrir finda a reunião, ao deixar o prédio e se encontrar novamente na rua plácida e tranqüila, que as folhas amareladas do outono tornavam ainda mais bucólica. Não se ouvia nenhum ruído de carro passando. (A ruela havia sido bloqueada mais à frente.) Chico teve a impressão de estar sendo seguido. Apertou o passo. Seu perseguidor apertou o passo também. Começou a correr. No entanto, o perseguidor continuou andando normalmente. “Deve ser paranóia minha”, pensou.
Repentinamente, de um Aero Willys azul-escuro estacionado, emergiram dois sujeitos mal-encarados, de japona e óculos escuros, que agarraram Chico e o enfiaram à força no banco traseiro da viatura. Na rua, nenhum transeunte a quem pedir socorro. (E se transeunte houvesse, adiantaria gritar?) Reconheceu, num de seus captores, o sujeito que, horas antes, vira parado do outro lado da rua escutando o radinho de pilha, enquanto aguardava o companheiro.
Naquele dia, a organização sofreu um baque terrível, frustrando a ousada ação no México: os integrantes da célula Unidos Venceremos caíram todos nas malhas da repressão.
O economista Roberto residia num moderno edifício de cinco pavimentos a uma quadra da praia do Leblon, com varandinhas em todos os apartamentos. Afonso atravessou a portaria sem ser abordado pelo porteiro. Subiu de elevador ao terceiro andar. O apartamento de Roberto era o da direita (o prédio tinha dois por andar). Tocou a campainha e aguardou. Roberto, que na noite da paella trajava terno e gravatão, no melhor estilo executivo, desta vez vestia camisa multicolorida de Carnaby Street que o remoçava dez anos.
– Oi, é você! – exclamou Roberto, em tom um pouco melífluo. – Que bom que você veio, vamos entrando! Posso apresentá-lo a meus amigos? Roseval, meu amigo Afonso, que conheci na terma.
– Prazer – disse Afonso, estendendo a mão para Roseval.
– Prazer é meu! Pode me chamar de Rô! – respondeu Roseval, com trejeito de bicha.
– Prazer, Carlos – apresentou-se o outro, estendendo a mão para Afonso.
– Prazer…
A extensa sala, decorada com pinturas de primitivistas brasileiros, subdividia-se em dois ambientes, separados por armário embutido que fazia as vezes de parede: de um lado, o gabinete de Roberto, com a escrivaninha de acaju em estilo clássico e a biblioteca; de outro (onde se encontravam Roseval e Carlos), o living, com bar exibindo as melhores marcas de uísque – inclusive marcas menos conhecidas como Glenlivet, Glenturret e Talisker -, mesa de jogos recoberta de veludo verde e confortáveis poltronas. Sobre a escrivaninha do primeiro ambiente, agenda encadernada em couro, busto de Voltaire, tinteiro do tempo do onça, mata-borrão e várias canetas-tinteiro. “Sou colecionador”, explicou Roberto, mostrando a Afonso algumas Parkers.
Afonso percorreu com o olhar a seleta biblioteca: predominavam tratados econômicos em diferentes idiomas e uma variedade de edições, brasileiras e portuguesas, das obras de Eça de Queiroz. “Você já leu o Eça?”, perguntou Roberto. “Ainda não.” “Pois você tem de ler o Eça. São deliciosas as expressões do Eça: irra! chuta! à carambola! que seca! que maçada!”
De volta ao living, Afonso serviu-se de uísque on the rocks. Copo numa das mãos e cigarro na outra, resolveu pegar andando o bonde da conversa entre Carlos e Roseval (Rô para os íntimos), enquanto Roberto sumia na cozinha a fim de preparar salsichas. Às vésperas da Copa, o assunto não poderia ser outro. Roseval era de opinião de que Saldanha é que tinha razão e não deveriam ter escalado Pelé, que já passara da idade de jogar.
– Você vai ver: no segundo ou terceiro jogo, ele vai acabar se contundindo e aí será um Deus nos acuda.
Roseval tinha cabelos encaracolados e oxigenados, vestia blusa ainda mais berrante do que a de Roberto e, embora fosse surfista, desmunhecava a cada fim de frase. Carlos, pálido e lânguido, tipo que, como os vampiros, troca o dia pela noite, discordava redondamente de Rô.
– O importante não é Pelé jogador, mas Pelé símbolo.
Roberto, que retornou da cozinha com a travessa de salsichas, mostrou-se preocupado com “três amigas que convidara, mas que pareciam ter furado”.
– Não é possível! Hoje, mesmo, confirmaram pelo telefone.
Transcorrida pouco mais de uma hora da chegada de Afonso, Roberto (já esquecido das amigas furonas) lhe perguntou:
– Sabe jogar pôquer?
– Mais ou menos.
– Pode ficar tranqüilo, que aqui ninguém é profissional. E tampouco jogamos a dinheiro.
– Então tudo bem – respondeu Afonso.
Todavia, para dar emoção à partida – explicou Roberto -, estipulariam um preço simbólico. Uma peça do vestuário, se todos estivessem de acordo. Não. Afonso não precisava estranhar, era só brincadeira! O cacife inicial custaria o par de sapatos e meias. O segundo cacife, a camisa. O terceiro, as calças. O primeiro a ficar de cuecas seria o perdedor da noite. Todos estavam de acordo? Tudo não passava de uma brincadeira!
Àquela altura do campeonato, já haviam esvaziado a garrafa de uísque. Roberto abriu a segunda, depois de consultar os convivas quanto à marca preferida. Afonso, que nas partidas das tardes teresopolitanas adquirira grande tarimba, não fez mau papel: já na terceira rodada, full hand à mão, levou de roldão quase todas as fichas de Carlos. Roseval parecia mais azarado ainda, em pouco tempo já passando para o segundo cacife. Roberto, o mais cauteloso, costumava “cair fora” ou “pagar para ver” para não perder muitas fichas. Afonso teve a impressão de que os dois primeiros em nada se esforçavam para ganhar a partida. Pelo contrário, dir-se-ia empenhados em perdê-la, tamanha a displicência com que jogavam. Decorrida outra meia hora, a segunda garrafa de uísque passava da metade. Roseval, descamisado, exibia tórax de ginasta, que Roberto não parava de fitar. Afonso teve a impressão de que, sob a mesa, carícias eram trocadas com os pés. O patrimônio de Afonso crescia a olhos vistos. Roseval e Carlos mostravam-se impacientes pelo término da partida e (desta vez, Afonso não teve mais dúvida) disputavam entre si a suposta honra de ficar de cuecas. Quando Roseval, four de valetes na mão, deparou com a grande chance de reverter sua derrota, acabou se traindo, com risinhos espremidos e olhares atravessados.
A certa altura, Roberto, aparentemente impaciente por ver Roseval de cueca, propôs uma rodada de fogo a fim de abreviarem o jogo. O ingênuo Afonso, do alto de sua vitória, protestou: se o jogo estava tão divertido, por que encerrá-lo tão cedo? A segunda garrafa chegava ao fim. Prevaleceu a proposta de Roberto. Os três adversários de Afonso, visivelmente embriagados, passaram a confundir as cartas e a transgredir as regras do jogo. Desta feita, Afonso teve certeza: por baixo dos panos, afagos eram deveras trocados. A rodada de fogo foi o tiro de misericórdia em Roseval: perdedor da noite, teve de desfilar pela sala em humilhante cueca. E Roberto e Carlos apupavam em coro:
– Tira! Tira!
Foi então que Roberto, com muito tato, com muito jeito, explicou a Afonso uma regra que havia esquecido de mencionar no começo. Naquelas partidas, era praxe o perdedor ser “enrabado” pelos parceiros. Afonso pareceu assustado:
– Enrabado? E se eu tivesse perdido?
Nesse momento, Afonso atinou com a razão das chacotas, dos cutucões, do pouco empenho pela vitória. Por um lado, sentiu-se logrado. Preferiu, porém, levar vantagem da situação: fazia mais de 15 dias que não trepava e o Roseval até que não era de se desprezar!
No sanatório, Cristiane e Marcos planejavam o futuro pós-fuga. De uma coisa estavam certos: jamais retornariam à casa dos pais. Cristiane contou para Marcos conhecer um pessoal que tinha se mandado para uma colônia de pescadores próxima a Salvador de onde não pretendia sair nunca mais: “um paraíso, não tem poluição, não pinta sujeira, o pessoal é todo cuca legal, ligado numa macrobiótica, numa meditação…” A própria Cristiane passara uma temporada de férias nessa comunidade. Todo mundo ajudando todo mundo: transavam artesanato, cultivavam hortas, tudo natural, sem química. O fumo rolava de montão. A moçada descolava peixe de graça com os pescadores, maior barato. Até gente famosa – o Caetano, o Gil (antes do exílio), o Jorge Amado – costumava pintar por lá. Marcos não teve mais dúvida: trancaria a matrícula na faculdade, venderia seus livros e pegariam, ele e Cristiane, a estrada, viajando de carona, para “vagar, curtir, aprender, apreender, viver!” (escreveu no diário).
Dias depois de chegarem na aldeia de pescadores, pintou um ácido. Viajar era preciso, viver não era preciso, e Marcos navegou pelos pensamentos. Sentiu-os como um fluxo em sua cabeça e resolveu se perder no meio deles. Procurou estancar o fluxo. Fluía, naquele exato instante, a sentença (porque linguagem e pensamento se identificam): “o que se oculta por detrás deste fluxo?” Deteve-se em OCULTA, ULTA, ULTA, ULTA, ULTA… E começou a viajar para além dos pensamentos. E compreendeu, assim, toda a Verdade! Era capaz de entender qualquer sistema filosófico: ver o mundo como acoplamentos de essências/acidentes, atos/potências; ou como reflexo esmaecido de idéias puras; ou como compósito de mônadas incomunicáveis em harmonia preestabelecida; ou como espírito absoluto que se faz alienado. E conseguiu entender o nirvana budista, que é o desatar de todos os nós; e a Santíssima Trindade; e a criação em seis dias. E alcançou integrar a mecânica clássica com a relatividade do espaço-tempo com a mecânica quântica do mundo atômico. E discerniu com assustadora clareza (como idéias claras e distintas) os conceitos de “liberdade”, “necessidade”, “acaso”, “espaço”, “tempo”, “espírito”, “matéria”, “número”… E lograria, se assim o quisesse, comunicar-se em qualquer dos idiomas vivos ou mortos do mundo, indo-europeus, orientais, indígenas, africanos. Ele, Marcos de tal, brasileiro, solteiro, vacinado, atingira a consciência cósmica. Marcos, o ILUMINADO. E percebeu que o efeito do ácido começava a passar. Cristiane dormia a seu lado. Sentiu a boca seca, as pálpebras pesadas. Exausto, adormeceu também.
No dia seguinte, não conteve a euforia, ao descrever a experiência para uma roda de amigos:
– Bicho, que desbunde! Eureca! Eu saquei tudo! Eu entendi tudo! Eu enxerguei a face de Deus!
– Chocante! – exclamou Cristiane. – É verdade que Ele é um velhinho de barbas brancas?
– Que nada, bicho! Deus é o maior barato, podes crer! Ele tem sete cores, como o arco-íris. E, ao mesmo tempo, não tem cor nenhuma, como o negrume da noite! Deu pra sacar?
– Claro, bicho! Falou e disse.
– E eu entendi o significado da vida…
– Conta pra gente, bicho!
– É uma transa assim, tá sabendo, muito doida, podes crer, uma de sem destino, sem lenço nem documento, deu pra sacar?
– Que barato, bicho!
– E o mundo, xará, é ao mesmo tempo finito e infinito! O corpo é a mesma coisa que a alma, e a alma, diferente do corpo, tá sabendo?
– Podes crer! Tremendo paradoxo!
– E agora, vamos descolar um rango, que acordei com uma puta fome!
O RESTO DA história o leitor já conhece. Por algum motivo a ser desvendado pelos cientistas sociais (recessão mundial pós-choque do petróleo? acordo de paz no Vietnã? assimilação dos valores da contracultura pelo establishment?), os hippies, os “viajantes” de ácido, os Meninos de Deus, as comunidades em aldeias de pescadores… – como se tivessem sido uma miragem – desapareceram da face da terra. (Até o Timothy Leary trocou a experiência psicodélica pela realidade virtual do computador!)
O “milagre brasileiro”, por sua vez, deu com os burros n’água, legando-nos a ressaca da dívida externa. Depois de 1970, nunca mais ganhamos a Copa. A própria Jules Rimet, toda de ouro, acabou sendo roubada. Os generais da Revolução morreram, ou (quem sabe?) tramam nos bastidores, ou querem simplesmente sossego, convictos do dever cumprido. Os subversivos de outrora tornaram-se jornalistas, políticos, ecologistas… ou simples burgueses.
Os marxistas tornaram-se ave-rara, como os monarquistas ou positivistas. O lucro e a propriedade privada já não chocam ninguém. A Revolução Sexual viu-se duramente fustigada pela epidemia do século, a AIDS (até parece que a religião tinha razão e que sexo é pecado). E maconheiros, atualmente, são os pais: os filhos preferem cocaína ou “malhação”.
Que destinos tiveram nossos amigos Marcos, Daniel, Renato e Afonso? Nunca mais os vi. Minto, encontrei Renato (seus pais tinham casa ao lado da minha, na Fazenda da Paz) um dia desses ao fazer cooper no calçadão da Atlântica. Estava mais gordo e com reentrâncias nos cabelos. Logo me reconheceu:
– Cara, há quanto tempo! Deve fazer uns dez anos!
– Doze para ser exato – respondi. – A última vez que nos vimos foi no seu casamento.
– Pois é. E aí, quais são as novas?
– Tudo velho! E você?
– Já estou com dois herdeiros – respondeu Renato.
– Não é possível, como o tempo passa! Naquela época, você se queixava de uma depressão, está lembrado?
– Coisa do passado, não gosto nem de lembrar. Culpa do vestibular. Naquele tempo, não era esta moleza de hoje em dia, você se lembra? Fiz tratamento e me curei.
– E aqueles seus amigos que você levava na Fazenda da Paz?
– Você ainda se lembra?
– Tenho memória de elefante.
– O Daniel, lembra?, depois que se mandou para a França pra estudar na Sorbonne, nunca mais vi. Diziam na época que ele se envolvera em complicações políticas, mas não acredito. Sabe como são as fofocas. Aliás, depois que retornou, tornou-se professor lá da USP e anda badaladíssimo. Já publicou até um livro, você leu no jornal?
– Recordo-me vagamente. E aquele porra-louca, como era mesmo o nome dele?
– O que fugiu de casa? O Marcos?
– Ele mesmo.
– Virou escritor. Escreveu um romance sobre aquela época, Marcos, O Iluminado.
– E o outro, que tinha uma pinta meio de fresco, você não achava? Com esta AIDS agora, deve andar a perigo.
– O Afonso? Está solteiro até hoje e trabalha como arquiteto com o pai. Dizem que ganha um dinheirão. E é visto com cada mulheraço!
– Cara, foi bom revê-lo. Você corre todos os fins de semana?
– Só quando estou inspirado.
– Deixa eu ir andando, que ainda faltam 1600 metros.
– Abraços para a sua esposa.
– A Raquel já era! Estou na segunda.
– Não diga, bicho.
– Há quantos anos não ouço alguém dizer “bicho”. Tchau, bicho!
– Tchau.
E a garota Sônia, a primeira grande paixão de Marcos – perguntará o leitor – terá conseguido se tornar solista internacional, conforme prognosticou o seu então namorado? Da próxima vez que encontrar Renato, perguntar-lhe-ei. Mas creio que não. Tenho a impressão de tê-la visto numa fotografia do jornal que mostrava um piquete durante a greve dos professores da Escola de Música.
DESPEDIDA DOS LEITORES DO FOLHETIM: Assim termina meu folhetim, que poderia ir para o livro dos anti-recordes como o de menor audiência da história da literatura. Meus métodos de espionagem (melhor, de rastreamento) detectaram tão-somente três leitores fiéis (e olha que no início enchi o saco de todos os meus amigos reais e virtuais para que acompanhassem o folhetim!): RW, JRO e EA. Caso alguém afora estes três também tenha sido meu leitor fiel, avise-me para eu atualizar a contagem e enviar um brinde: o poema que Marcos escreveu no cemitério e que fiquei devendo, lembram??? (Brasileiro não tem memória!)
Obrigado por me lerem e peço desculpas por eventuais cenas chocantes e termos chulos. A culpa não foi minha, mas da época que tentei retratar, bicho!