Nem tudo está perdido. É verdade. Aquela casa descolorida sobrevive. Graças à trepadeira na porta. Florida. Um rosa vivo e quase agressivo. Contrastante. As gentes de olhos mortos. Olhos de quem acaba de acordar e pretende passar o resto do dia nesse enleio. Mas o dia é azul e o sol brilha. E ninguém vive de brisa. Então lá se vai o pai na bicicleta alaranjada. Fazer entregas. Para o supermercado lá da avenida. Dois filhos. O piá é pirracento. Não larga daquele bodoque. É só se ver livre e lá está, de novo, a matar passarinhos. A menina é trabalhadeira. Lava a roupa e varre o terreiro coberto de folhas. Asfalto não tem. Um fim de mundo perdido numa cidade no fim do mundo. A vizinha cantarola. Portunhol quase perfeito. Cheiro de café torrado no ar. É a velha Gioconda. A outra vizinha rega a horta. Falta chuva. São Pedro deve estar de férias. Antenor quer casar. Carrega tijolos. Mistura a massa. No fim do ano, quem sabe? Se Catarina quisesse, já estariam juntos. Mas ela é pura. Mulher honesta. Só com tudo arranjado. E outras coisas só depois do casamento, ora já se viu? Um homem a cavalo. Uma mulher feia com uma trouxa na cabeça. Um mulatinho de uns dois anos e nariz escorrendo. A alça da camiseta caída. Descalço. Chorando. A mãe não se preocupa. Que chore o quanto quiser. Ela também já chora a vida inteira. Carícia é coisa de gente abastada. Gente pobre vive mesmo é aos trancos. E barrancos. Desde que o desgraçado do Luiz foi embora ficou nessa miséria. Nunca ia perdoar. Tanto que fez por ele e acabou trocada pela bonitinha da esquina. Mas não tinha nada não. Ela ainda ia se dar bem. Ia sim. Até já olhava de soslaio para o João. Se ele correspondesse tudo estaria arranjado. João era moço bom. Trabalhador. Não era desses de cair no bar e deixar a mulher esperando. Era da casa pro trabalho. Do trabalho pra casa. Não devia ganhar muito. Talvez menos que o suficiente pra levar comida pra boca dela e do filho. Mas também não podia ficar escolhendo. O que aparecesse primeiro estava bom. Desde que não fosse um pinguço como o Luiz. Que de apanhar havia cansado. O piá passa cantando Conda, conda, conda, a Gioconda é songa-monga. A velha esbraveja. Franze a testa enrugada. Mais por hábito. Que já não ouve palavra. A menina acabou o serviço e está sentada debaixo da árvore. Treze anos. Artista é um ser supremo. E Rodrigo Santoro um deus grego. Paixão platônica. O homem do cavalo retorna trazendo dois frangos vivos amarrados pelas pernas. Iguaria para o fim de semana. Tem de ser ao molho pardo. O menino chorão agora está nu. E come terra. Ainda no domingo pôs uma lombriga. Chá de folha de goiabeira não resolveu. Negócio é enfrentar o postão. Izildinha passa e as mulheres atentam. É um perigo. Gosta de desfazer casamento. Logo de manhã e aquela saia vermelha. E uns cabelos arrebitados e crespos. Homem é o bicho-cão. Cai logo nessas armadilhas. Um caminhão chega e despeja lixo no terreno baldio. Os moleques saem em disparada. Bem podem encontrar algo de valor. Podem até ficar ricos. Mal sabem que novela é novela. Na vida real não tem dessas coisas. Uma chaminé. Alguém que aquece o fogão para o almoço. Cheiro bom nenhum. Só mesmo a carniça que vem lá das bandas do curtume. Ninguém reclama. E nem adianta. Um quadro inóspito, não fosse a trepadeira rosa na beirada da porta. Um restinho ainda da esperança.