Há anos que é assim. Reunião dos quadros principais na sede da empresa.
Em plena véspera da Natal. Quando toda a gente anda atarefada nas compras de última hora, o presente para o amigo que, afinal, sempre vai aparecer para a ceia, a escolha dos vinhos, o regressar cedo a casa para o aconchego da lareira, e a reunião agendada para as nove da manhã em ponto.
Três horas seguidas de enfadonhos relatórios, comentários ao crescimento, já esperado, do volume de negócios, breves intervalos para o café, os de longe, das filiais, olhando repetidas vezes para o relógio, então por cá mais uma vez? e como vão as coisa lá por cima? desabafos, isto é sempre a mesma coisa, nunca mais acaba, até que, por volta do meio-dia, meus senhores, a reunião está acabada, teremos agora o nosso almoço anual, uma espécie de antecipação da ceia de natal desta família que queremos que seja sempre a nossa empresa.
As mesas decoradas com pequenas árvores natalícias de mal disfarçado plástico verde, com bolas coloridas, o almoço interminável e, meus senhores, segue-se a distribuição de pequenas lembranças a cada um dos participantes, família que somos, os presentes não poderiam ficar esquecidos, não é verdade?, entre o pudim francês e o café, demorados apertos de mão direita com o presente na esquerda, tenha um bom natal e um feliz ano novo, continuamos a contar com a sua imprescindível colaboração e tenha cuidado no regresso, faça boa viagem que lá para os seus lados ou chove ou neva, conduza com cuidado.
Os agasalhos à saída do hotel, a procura do carro no estacionamento, filas intermináveis de carros carregados de embrulhos coloridos nos acessos à saída da cidade.
Finalmente, quatro da tarde, a auto-estrada, faróis acesos, como escurece depressa, e a música festiva no rádio, I’m dreaming of a white chrismas, bing crosby, jingle bells misturados com anúncios, crianças irrequietas em acenos alegres nos bancos traseiros, janelas iluminadas nas casas que passam apressadas, cem, cento e vinte, livra, parece um cortejo de casamento, ainda faltam trezentos quilómetros, vou ter que parar, atestar o depósito, café e cigarros que estão a acabar.
Na área de serviço, atestou o depósito , estacionou o carro.
À entrada do restaurante um pai natal barrigudo com hálito de cerveja, boas festas, abriu a porta com o sorriso a desequilibrar-lhe a longa barba postiça, gente apressada, pai! compra-me um chocolate, vê lá se queres mais alguma coisa que agora só vamos parar quando chegarmos a casa dos avós, a fila enorme serpenteando em direcção ao self-service, e a música, a música de sempre inundando o ambiente com coros alegres, um café bem cheio e um maço de pall mall lights, por favor, ah, embrulhe-me aqueles três pasteis de carne, por favor, obrigado.
Sorriu para o pai natal, passou a porta e apanhou no rosto as primeiras gotas de chuva gelada, tocada pelo vento, só faltava a chuva agora. Sentado no carro, limpou os óculos, ligou o motor , retomou a auto-estrada. No mínimo dos mínimos mais duas horas mas, com esta chuva, não sei, o melhor é ir com calma, não tenho ninguém à minha espera.
Pelo terceiro ano consecutivo os miúdos vão passar o natal com a mãe. Com a mãe, os pais e os irmãos dela, os primos e primas, quase da mesma idade. Nem se vão lembrar de mim, é melhor para eles. Não fazia sentido algum passarem o natal comigo, apenas os três, quando eles crescerem, então, já estarão em idade de entender muita coisa.
Os faróis rasgam a noite, iluminam a chuva. Cento e quarenta, cento e cinquenta, agora já há menos carros, não tem perigo e ninguém multa ninguém por excesso de velocidade num fim de tarde destes. Mais uma hora, hora e meia no máximo, depende do trânsito à chegada. Depois, a árvore de natal, feita especialmente para eles, já está pronta há dias, cheia de laçarotes vermelhos e dourados, junto à lareira. E os presentes também já lá estão, à espera da tarde de amanhã. É pouco tempo, eu sei, eles estão ansiosos por voltar, para junto dos primos, para retomarem a brincadeira interrompida com a minha chegada. Mas não consigo passar sem ver os olhares alegres, o desembrulhar das prendas, a colecção de livros que ela pediu, e a boneca, ela não está a contar com a boneca, o combóio eléctrico para ele e o spitfire em miniatura para construir e mais uns tanto embrulhos carregados de surpresas. Este ano comprei tudo o que me deu na cabeça, tudo que eles pediram na cartinha ao pai natal e mais o que eles nem sonham. Depois levo-os de novo à mãe, para os primos, para os novos brinquedos.
Acendeu um cigarro. O ronronar do motor, a chuva a bater de frente, as escovas limpa-vidros ao compasso da música, não, nunca mais faço este disparate, sair de casa ás cinco da manhã, trezentos e vinte quilómetros até à reunião e outros tantos no regresso, num dia como este, mas falta já muito pouco. Quando chegar vou tomar um duche bem quente, enfiar o roupão, acender a lareira, os pasteis de carne, um uisquinho, sentado no sofá até que o sono venha.
A ponte sobre a estrada, ao fundo da descida, a curva rápida à direita, faz-se bem a cento e quarenta aquela curva, o leitor de cds a debitar músicas natalícias, os pilares da ponte, o carro a fugir, a travagem brusca, os pilares da ponte, o estrondo, o clarão.
É sempre a mesma coisa, todos os anos, nesta altura, tem que me calhar a mim uma chatice destas, se tem algum jeito morrer-se na véspera de natal. Os dois polícias de transito regulavam a fila de automóveis que se formara. Vê lá se consegues desligar a porcaria do rádio, há mais de meia hora que está sempre a tocar a mesma música, parece impossível, no estado em que ficou o carro, e aquela porcaria a tocar, a tocar sempre a mesma coisa, driving home for christmas, com o volume no máximo… vê lá se consegues.