Meu Professor de Português

Não posso descrever com fidelidade o seu rosto. Há certas minúcias e detalhes que o tempo se encarrega de apagar. Não posso, por exemplo, descrever seu nariz, sua boca, mas, em algum canto do meu cérebro ficou gravado seu olhar míope, suas sobrancelhas cerradas entrecortando-se acima dos olhos. Era um olhar tão grave que eu não ousava desafiar. Ele foi meu professor por um período de três anos. Durante a 5 ª, 6 ª e 7 ª séries, consecutivamente. Excluindo os domingos, eu o encontrava todos os dias. Era mal-humorado , carrancudo e não fazia a mínima questão de cumprimentar os transeuntes. Esboçar um sorriso? Só para as meninas do magistério. Quando elas passavam ele estendia um olhar benevolente, como se tivesse alguma carência afetiva, e sempre exclamava a mesma frase: “ah, se eu tivesse 20 anos…” Nessas horas eu chegava a ter pena dele. O silêncio que procedia após a fala, parecia avolumar-se dentro do peito, sufocando o espaço interior. Com olhos faiscantes ele destilava sobre nós o veneno da frustração: “Você aí que parece a Belém-Brasília, leia sua redação”. Essa era eu. Às vezes, também me chamava de magricela, quando não, dizia apenas “você aí”. Nunca me lembro de tê-lo ouvido pronunciar o meu nome, nem os de minhas amigas. Será que ele temia criar algum laço mais profundo? Se essa era a meta, ele conseguiu. Eu mesma cheguei a ter ódio dele. Ódio esse, que eu guardava em sigilo e disfarçava com um sorriso amarelo pra que ele não percebesse. Mas, quando o rancor silencioso vai se avolumando e transforma-se numa bola enorme, arremessada freneticamente do estômago para a garganta, num ricto nervoso, a gente desrespeita a lei e vomita. Vomita tudo de uma só vez. Eu estava cansada de tanto escrever redação, narração, descrição, dissertação… e todos os “ãos” que ele usava para discriminar os textos. Pior é que nos mandava ler em voz alta. Líamos, e ele criticava: “Precisa melhorar, está faltando a essência”. Quanto tempo vaguei à procura da tal essência! Pensava ser ela, um fluído aéreo que eu jamais conseguiria captar. Naqueles três anos, tudo o que aprendi estava relacionado com a produção de textos. Na época eu já sabia o que era cacófato, pleonasmo, ambigüidade, metáfora… entretanto, não sabia diferenciar o objeto direto do indireto. Mas, como eu ia dizendo, chegou o dia do vômito. Eu disse vômito? Céus! Se meu professor lesse isso… Era a prova do último bimestre da 7 ª série. Como de costume, ele nos mandou escrever uma redação. “Tema livre”. Dissertei sobre o seguinte: “O professor que eu quero ter”. Fui fundo. Imersão total. Devolvi a ele a palavra cortante que havia me escalavrado. Devolvi na forma mais aguda das estruturas linguística. Penso que doeu. Na entrega dos boletins, ele chamou-me à parte. Tremi. As pernas bambearam. Os joelhos chegaram a bater um no outro. Fui capaz de imaginar a expressão da minha mãe observando um zero no meu boletim… como me enganei! Ele havia me dado dez! Apertou minha mão e disse: “Vá em frente, você encontrou a essência.” Descobri, numa fração de segundo que a essência é o conjunto de sentimentos que dá vida ao texto, é a natureza das coisas reveladas na sua intimidade. Essa é a melhor imagem, dele, que guardei na retina da minha memória. Mesmo por linhas tortas, levou-me a tomar gosto pela escrita. E isso é suficiente para eu perdoar meu velho professor de português.