Temporal

Final de tarde de dezembro. O tempo ficou bonito para chover. As nuvens carregadas de azul-escuro pareciam estar prestes a serem furadas pelo crucifixo na ponta da torre da igreja. O vento, com seu cheiro de chuva batia em meu rosto e me causava uma sensação gostosa. Foi quando surgiu na calçada meu colega de rua, Zé Lira, que segurava uma lata de querosene e, angustiado, me chamou para ajudá-lo a pegar a lavagem dos porcos no restaurante do seu tio. Eu devia ter uns seis anos de idade e nem me passou pela cabeça que meu pai estava para chegar do trabalho.
Sai correndo em meio aquela tempestade que se prenunciava. Foi tudo muito rápido, voltei alegre e até gritando na chuva de tanta felicidade.
Meu pai me esperava na porta com uma “cara” de raiva e com uma voz áspera que jamais vou esquece-la. Sua habitual expressão de zangado me impunha um medo paralisante. Acovardado, nem conseguia falar. Mal botei o pé dentro de casa fui sacudido pelo peso de sua mão que me acertou o chapéu de couro em minhas costas. Não lembro muito bem o que ele rosnava, sei que sua força era brutal e seus gestos coléricos. Sua mão me empurrava para o centro da sala e o estalar do chapéu soou por muitas pancadas. A casa escura e triste parecia mal-assombrada. Meus olhos rígidos, os dedos finos e os lábios trêmulos denunciavam-me indefeso.
Somente mamãe seria capaz de me socorrer daquele suplício. Ela estava na casa de vovó. Se, pelo menos, eu tivesse corrido, apanharia em outra hora, não teria problema, mamãe estaria por perto e saberia o limite de uma surra. Ou, quem sabe, eu tivesse ficado no campo jogando bola, quando a chuva passasse voltaria escondido. Mas, não era da minha natureza fugir.
Continuei apanhando por toda a extensão do corredor frio, quartos lúgubres cheiravam a mofos e o teto em ruínas em que pendiam casas-de-aranha. A cada chibatada eu caía, caía e não chorava e isso aumentava a sua fúria louca. Lembro-me que com sua voz rouca ele gritava: “Chora cabrito”.
Não sei porque eu não conseguia chorar. O choro estava longe ­ e continuou longe por muitos anos de minha vida. Não sabia porque apanhava e muito menos tive a oportunidade ou coragem em perguntar.
Tento juntar aquele quadro em que era açoitado e não consigo capta-lo em sua totalidade. O homem gritava de ódio e seus berros ecoavam por toda a casa como num filme de terror. Fui arrastado para o quintal da casa e, a pretexto de me dar banho, ele bateu várias vezes com minha cabeça na parede. O sangue começou a escorrer pela testa banhando todo o meu rosto. Sua raiva não lhe deixava ver. Nesse momento, Maria, a empregada, botou a cara na janela da cozinha e me suplicou: “Chora meu filho… chora, por favor”.
Ouvi os passos de mamãe no assoalho da sala e logo saiu seu grito sem forças de uma mulher cansada e doente, desanimada da vida pelo próprio semblante, para, em seguida, cair com todo o corpo no chão. Pensei que ela estivesse morrendo e corri para ampará-la. Maria veio com um copo d’água e percebi que ela tinha desmaiado. O homem ficou com medo e a levantou em seus fortes braços. Aproveitei e sai de cena.
Vinte anos depois, as feridas quase cicatrizadas pelos carinhos de mamãe e por sua compreensão que me pedia para esquecer as grosserias e as indiferenças do meu pai, eu enfrentava as circunstâncias de um momento delicado na história do país cursando o último ano da Faculdade de Direito. Era o período negro da Ditadura Militar que se instalara no Brasil há quase duas décadas. O Movimento Estudantil Universitário, como vanguarda da sociedade civil, se estrebuchava fazendo passeatas, promovendo debates, confeccionando seus próprios jornais, enfim, se definindo do ponto de vista ideológico.
Um dia após a manifestação de apoio ao primeiro de maio, Dia do Trabalhador, fui preso, interrogado e torturado ­ de forma racional e mais perversa do que apanhara quando criança ­ pela Polícia Federal, a serviço do regime de exceção. A notícia se espalhou. A Igreja Católica e a Ordem dos Advogado do Brasil denunciaram e as famílias dos estudantes encarcerados fizeram vigília na catedral de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no centro da cidade, em sinal de protesto.
Fiquei sabendo, por intermédio de mamão, que em conversa com meu pai, em que ambos choravam, ele comentava sobre minha prisão: “ele deve estar sofrendo muito, porque está apanhando e não fala”.
Nunca me explicaram o motivo pelo qual me prenderam. Suponho que seja o mesmo porque meu pai me batia. Acho que fazer uma revolução deve ser tão puro, natural e gostoso quanto tomar banho de chuva, ainda que debaixo de uma tempestade.