O Livro Que Já Foi Árvore , a Semente Beija-Flor e o Adeus

Eis-me aqui e me confesso: meto sempre os pés pelas mãos…
Não é que ontem eu fui comprar livros e fiquei ali, em frente à prateleira, imaginando o presente e o laço, sorrindo? Sorri, sorrio sempre sozinha, já me acostumei a não ter a quem dizer, por exemplo, que os livros cheiram à resina das árvores que as páginas foram um dia… Fico me imaginando, ali na livraria: senhor, sabia que as folhas deste livro um dia já foram árvore ?

Ah, que bobagem isso! Há gente que não entende sequer os sentimentos dos outros e lá vai entender devaneios, sonhos, folhas que foram árvores, jasmins que nem são só plantas, mas um estado de imaginação? Outro dia, vinha vindo uma tempestade e abri a janela para sentir o cheiro do vento antes da chuva. Foi quando uma semente de cássia ( ou acácia?), disfarçada de folha- ou de pássaro? – veio rodando no ar e , entrando pela janela, pousou no meu colo. Imaginei que fosse um inseto grande e aflito – uma esperança, talvez? ­ que sobre o meu colo viera buscar abrigo. Soube a folha-semente quando em casa, tão linda que fotografei. Tão perfeita que, em seu vôo de ave, imitou um beija-flor que agora, enquanto escrevo, pousa solene no lado direito do monitor, me olhando, criando olhos e asas. Vai voar a qualquer hora, eu sei que é questão de tempo, e sair pela janela, beija-flor legítimo que é. Aprendi que há beija-flores falsos que são mais verdadeiros que os reais. Tenho aprendido muito observando a vida, os ventos e as tempestades.
Eis-me aqui, confesso, diante dos meus desastres, enrolando os pés nos tapetes, enxergando mal de perto, com três graus para ler e reler. Sou quase cega para as páginas dos livros, mas ainda sei de resinas e beija-flores. Talvez entenda, por força da profissão, também de ostras e conchas, pérolas com as quais enfeito às vezes o pescoço, ou as orelhas. Às vezes um anel. Mas nunca gostei de pérolas que, quando ainda ostras, me fazem muito chorar.
Como dizer, diante da pressa, da cegueira e da ignorância, que pérolas já foram grãos de areia? Que habitaram ostras, que moravam mar?
Confesso: entendo pouco de pérolas, mas sei de conchas nacaradas entre os tons sobre tom de azuis, rosa e os quase amarelos… Como dizer a quem lápis aponta que ele também foi árvore? Como apontar o lápis sem que se lembre a frescura que há por baixo das sombras das florestas? Como não sentir no vento o cheiro das folhas e das grandes árvores onde, muitas vezes, o beija-flor que mora no meu peito busca abrigo?
E como dizer que eu tenho, dentro do coração um inquieto e desastrado beijaflorzinho que um dia me apontaram folha, assim no vento, rodopiando sob as sibipirunas em flor?
Também quero florestas encantadas.Mas moraria nelas, florestas não são só para olhar…
Também quero esse perfume instigante, transcendente, que me põe a alma inquieta. Tenho pressa em plantar as árvores , em colher os frutos, em reparti-los sobre a mesa de quem teve tanta fome. Tal como o coração de uma árvore, bate também meu coração. O mesmo que no beija-flor é como se fosse um soluço. O mesmo que em mim soluço é.
Fácil viver, descubro. Difícil é dizer adeus ao que nem livro, nem árvore, nem folha, beija-flor ou ostra era. Difícil é dizer adeus à, de Vivaldi, Primavera.