Teoria da Paixão Literária

Chega um dia ou uma época em que a gente toma conhecimento do caminho, muitas vezes sem volta, da leitura. A iniciação dessa jornada pode começar pelo incentivo dos pais, de um professor de literatura, de um amigo ou até mesmo de um livro lido assim… a esmo. Mas por que, então, nem todos são tomados pela vontade quase incontrolável de não parar mais de ler? Simples. É que o cupido da leitura aponta sua flecha de letras para uma infinidade de gente, mas só os incautos e desprotegidos são “flechados” por ele. Esse seres ingênuos – que também podem ser chamados de vítimas dessas pestinhas do paraíso letrado – na verdade já possuem um alvo oculto, prontinho para receber a espetadela das letras. E esse cupido tem uma pontaria que é fogo! Sua mira implacável sempre acerta o alvo em cheio.
Pronto, já era!
Tudo começa quando a presa (o leitor) ouve aquele comentário despretensiosamente eufórico sobre um livro ou lê um romance assim, como quem não quer nada. É neste momento que a tal haste invisível de extremidade pontiaguda pode muito bem tê-lo atingido, exatamente no alvo, sem que o leitor tivesse tempo de se dar conta do fato. Contudo, os primeiros sintomas costumam aparecer somente um tempo depois…
Sim, a coisa é complicada!
Aos poucos o leitor vai dando sinais de que está irreversivelmente contaminado. Do primeiro livro, passa para o segundo, aí vem o terceiro e o quarto e o quinto. Numa fase mais adiantada, a pobre da vítima já parte para as obras completas, contos, artigos, crônicas… Depois vem a fase das citações, quando o paciente começa a decorar seus poemas favoritos e a recitá-los nos mais variados momentos da vida. Os mais compulsivos relêem obras, apaixonam-se por determinados autores e lamentam não terem nascido na mesma ocasião e no mesmo local em que esses escritores vieram ao mundo. E não adianta o camarada ter uma profissão não diretamente relacionada com as letras porque o germe da literatura estará lá, pronto para atacar, mais dia, menos dia.
Uma vez que a doença se instalou claramente, vem a fase mais importante e perigosa. O leitor, infestado, deslumbrado e hipnotizado por belíssimas construções utilizadas por seus autores favoritos, sente vontade de escrever. Pega o papel e a caneta, ou o teclado e a tela em branco do Word, e começa… Anos de leitura de boa qualidade, romancistas de primeira, autores nacionais e estrangeiros devorados com prazer e atenção e, no entanto… Nada! A primeira frase não sai. A primeira letra, também não. A imaginação fervilha, as idéias brotam desordenadas, mas o texto empaca. Aqui o leitor sente a angústia e a frustração de tomar consciência de que nasceu portador do alvo, mas que talvez nunca venha a ser um bom arco para a flecha literária. Não foi duplamente agraciado. Fazer o quê?
Melhor tentar por um outro caminho…
Outro dia eu estava lendo Dom Casmurro, de Machado de Assis. O autor deve ter algum poder sobrenatural para utilizar os recursos do nosso idioma de maneira brilhante, permitindo, ainda, que todos possam entendê-lo. Há mais genialidade nas entrelinhas daqueles olhos de ressaca do que…
E então, será que já dá pra contaminar?