Estava com o saco na lua naquela manhã, a reunião mal começara e já estava farta, quase em desespero. A janela mostrava um céu debochado e brincalhão. Nem mesmo a ordem do dia, a pauta enviada alguns dias antes, tivera o cuidado de ler, estava naquela reunião absolutamente por fora, no entanto, pela presença dos “Chefinhos” e do “Chefão” e a papelada encadernada com um “confidencial” vermelho e arrogante, entregue a cada um pela Secretária, quase num cerimonial religioso, logo na entrada! Também não entendia bem a razão da sua presença, era apenas a advogada auxiliar da ajudante auxiliar do ajudante-mor daquele grande e prestigiado escritório de “advocacia”…
Não conseguia prestar atenção, seus ouvidos recusavam-se a ouvir, encontrava-se em pleno inferno astral, estava com sono, sem grana, celular sem carga, sem namorado, brigada com a irmã por causa de uma camiseta da Zump, com vontade de ir pra praia, ficar bronzeada… com um fichário de umas vinte “causas” pra ir olhar o andamento no “Foro de Pinheiros”… e tudo isso numa segunda-feira azulzinha, azulzinha de maio…
Então desligou-se. Sempre fora assim, quando algo incomodava ficava surda, muitas vezes até mesmo cega. Refugiou-se em si mesma e ficou pensando no filme que tinha visto na noite anterior quando, inadvertidamente, em voz alta :
– Alice não mora mais aqui!
Quando ouviu sua própria voz repetindo o título do filme e a besteira que fizera: gelou. Os olhares da sala cruzaram-se rapidamente, as bundas começaram a se mexer nas cadeiras, alguém apagou o cigarro, um outro mordeu a ponta do lápis.
Decidida fechou de supetão a pasta “confidencial” e, com o mínimo de dignidade que lhe restava, levantou-se a caminho da porta por esponte própria, antes que alguém fizesse as vezes, quando foi interrompida pelo “Chefão”:
– Hoje, nesta sala, aprendemos uma grande lição que nos foi dada pela nossa querida e mais jovem causídica, que com sua sensibilidade feminina, soube encontrar a resposta, a palavra exata. Faço questão absoluta de parabenizá-la diante de todos, rendendo-lhe as minhas mais sinceras homenagens. Estou pasmo diante da sua sabedoria.
Comovido, começou a bater palmas espaçadas, quase ritmadas, depois calorosamente, no que foi seguido pelos demais.
A querida causídica sorrindo sobriamente, com a compostura dos sábios e dos modestos :
– Creio que os senhores entenderam perfeitamente o que eu quis dizer, razão pela qual, peço licença para me retirar, pois tenho um prazo a ser cumprido ainda hoje (a maravilhosa desculpa que todo advogado tem quando quer sumir prazo a ser cumprido, bendito seja, amém!!! !)
E com um leve aceno de agradecimento, retirou-se da sala (mesmo porque não tinha outra alternativa embora gostasse um pouco dos aplausos).
Correu pra sua mesa salva do inferno, porém confortada e muito ansiosa, pois, como de costume, no dia seguinte, receberia uma cópia da ata da reunião e daí poderia também aplaudir-se com o mesmo entusiasmo dos colegas.
Se alguém naquele instante lhe perguntasse qual a sua profissão, com convicção diria : zurídica … que tanto poderia ser a pronuncia do “jota” como “ze” (em função de estar falando com a boca cheia ) ou a fusão de “zumbi” com “rídica”, ou quem sabe melhor ainda um diminutivo carinhoso uma zuper-jurídica…