Marcos, o iluminado – parte 9

(VIAGEM MUITO DOIDA PELOS ANOS SESSENTA)
9
ERVA MALDITA
CERTO DIA EM que chegou mais cedo do trabalho, o pai de Marcos chamou o filho para uma conversa. “O que será: alguma bronca?”, pensou Marcos. Por fração de segundo, o sangue gelou-lhe nas veias: “Será que `dancei’? Será que ele desconfia de que queimo fumo?”
Na verdade, tratou-se de assunto bem mais ameno: o pai queria cumprimentá-lo pela namorada. “Garota distinta, de boa família; eu também já fui moço – continuou o pai, embora custasse a Marcos acreditar – e sei muito bem que, com o namoro, as despesas mais do que dobram; é preciso pagar para a garota um cinema, um teatro…”, de modo que decidira dobrar-lhe a mesada!
Marcos quis estrear a supermesada levando Sônia a algum lugar caro. Pensou no Le Bateau, mas os planos de Sônia não coincidiram com os seus. Famoso conjunto inglês de música de câmara excursionava pela primeira vez no hemisfério sul, apresentando-se no sábado seguinte na sala Cecília Meireles, em seu único recital no Rio de Janeiro. (Na verdade, tinha por destino Buenos Aires, o Brasil tendo sido encaixado na última hora por um empresário ousado.)
– Você não quer vir comigo? – sugeriu Sônia, de modo que o programa no Le Bateau ficou adiado sine die.
Marcos não era totalmente avesso à música clássica (posto preferisse o rock): chegara a colecionar série de discos, vendidos em bancas de jornais, com as principais obras dos grandes compositores, a quinta de Beethoven, a inacabada de Shubert… No entanto, o ranger plangente dos quatro instrumentos de corda, sem a contraparte do piano ou o contraste feérico da grande orquestra, despertaram em Marcos misto de tédio e impaciência (talvez por culpa da maconha paraguaia, especialmente forte, que sorvera em profundos haustos antes de passar em casa de Sônia, não se esquecendo de escovar bem os dentes para não dar “bandeira”…) Se, no caso do rock, a erva tão bem realçava os seus aspectos rítmicos ou a estridência da guitarra, em se tratando de música de câmara, gerou uma total deformação: ora, dominava o campo perceptivo a agudez dos violinos, bloqueando os sons mais graves da viola e do violoncelo; ora, por estranho processo de inversão, tomava conta da consciência de Marcos o som roufenho do violoncelo, anulando os violinos. Subitamente, o tempo pareceu querer parar: dueto entre os violinos transformou-se em duelo, degenerando rapidamente em conflito aberto, os sons dos dois instrumentos confundindo-se com ferozes bicadas de galos de briga (a ponto de Marcos já não saber se estava num teatro ou numa rinha). De repente, já não se tratava mais de rinha. Os dois instrumentistas, empertigados em seus fraques de um negro infernal e ostentando gravatinhas borboletas, traziam ao mundo choro e ranger de dentes (o ranger dos violinos, entendam bem). Marcos fixou a atenção em seus rostos: a maldade estampava-se em cada vinco, no sorriso sardônico, no olhar sulfúreo… Marcos teve ganas de se levantar e alertar a platéia para o perigo! Som gravíssimo do violoncelo emergiu das profundezas do inferno, neutralizando a ameaça dos violinistas. Mas o suspiro de alívio de Marcos foi fugaz. Seu coração pôs-se a bater mais forte. De chofre, reconheceu a melodia: a marcha fúnebre. Quem havia morrido? “Quem, meu Deus, quem?” Por isso, estavam todos calados! Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris. Foi então que Marcos discerniu: ELE havia morrido! ELE, Marcos, ao pó retornaria!
– Vamos dar uma saidinha para tomar uma Coca?
A voz meiga de Sônia trouxe a realidade de volta aos eixos. Começara o intervalo. A luz forte contrastando com a penumbra anterior e a atividade física de se levantar da poltrona e caminhar para o foyer deram o golpe de misericórdia no delírio. “Não imaginei que este fumo fosse tão forte; se soubesse, teria guardado para ouvir som dentro de casa.”
– Gostando do concerto? – perguntou Sônia.
– Maravilhoso! – mentiu (mineiramente).
– Vamos dar uma saidinha depois?
– Ótimo!
Repentinamente, Marcos deu uma risada. “Qual é a graça?”, quis saber Sônia. “Nada, não…”, desconversou Marcos. “Pode dizer”, insistiu. “Está bem! Tive um pensamento engraçado: você tem cara de arpejo!”
Na segunda parte da audição, tocou-se um repertório mais leve (ou, talvez, o efeito minguante do entorpecente assim fez parecer). Peça alegre de compositor setecentista evocou-lhe imagens bucólicas de carneirinhos e flores silvestres. Depois do concerto, tomaram um táxi para a avenida Atlântica. Vodca com bastante gelo dissipou-lhe de vez a influência da cannabis sativa. A doce Sônia, no entanto, parecia possuída pelo espírito sisudo de algum instrumentista ou compositor de antanho. (“Será que ficou furiosa por eu tê-la comparado ao arpejo?”, pensou Marcos.) A menina, circunspeta, perorava sobre pizzicatos e Stradivarius e oitavas, ao que Marcos, automaticamente, respondia: É… é… é…” Até que, aproveitando uma pausa de Sônia, extravasou:
– Soninha, está na cara que você vai fazer muito sucesso, vai ganhar bolsa na Europa, vai se tornar solista… Dentro de dez anos, ao folhear o jornal, depararei com o anúncio do concerto na Cecília Meireles de famosa violoncelista… e, orgulhoso, direi a todos meus amigos: ela já foi minha namorada!
À semelhança de um passe de exorcismo, o prognóstico de Marcos expulsou de Sônia o espírito soturno (ou teria sido o chope?). Voltaram à conversa solta, gostosa, desinibida, conversa de dois pombinhos, inocentes como o desabrochar do lírio. Entretanto, um ponto preocupava Marcos: consumia eventualmente maconha. Era bem verdade que com grande moderação, e não por escapismo, mas pela expansão sensorial proporcionada: a melhor definição dos sons (não obstante a experiência negativa com o quarteto de cordas), a maior vivacidade das cores, certa “clareza” de raciocínio inatingível no estado “careta”. No entanto, não se poderia negar certo preconceito da sociedade contra as drogas, associando-as à delinqüência, à insanidade mental (como se o álcool, universalmente consumido, fosse menos nocivo). Em suma, caso algum dia Marcos entabulasse um relacionamento mais sério e duradouro com alguma garota, mais cedo ou mais tarde, teria de lhe revelar essa faceta de seu comportamento. Em relação à própria Sônia, com quem estava saindo apenas pela terceira vez, já se sentia um pouco culpado por não se lhe abrir inteiramente. “Não será por meus belos olhos ou pela minha linda camisa que ela há de gostar de mim, mas pelo que realmente sou.” Caso Sônia se escandalizasse com a revelação e rompesse o namoro, dos males o menor. Antes cortar o mal pela raiz do que alimentar um relacionamento baseado em aparências. Como, porém, pôr o guizo no pescoço do gato? Com que palavras levar assunto tão melindroso a um ser tão sensível? Mais de uma vez, ensaiara, em frente ao espelho: “Soninha, meu bem, você deve ter ouvido falar de artistas que se valem de drogas para expandir a sensibilidade…” Ao que Soninha, rispidamente, responderia (na imaginação de Marcos): “Pelo que eu saiba, Bach, Mozart, Beethoven não precisaram de drogas para compor.”
A vodca agiu como injeção de coragem. Com muito tato e circunlóquios, Marcos se desabafou, tendo a cautela de “dourar a pílula”, de despir a erva de sua conotação maldita. Sim, fumava maconha, mas em quantidades ínfimas; e com finalidades estéticas: aguçava-lhe a percepção, sobretudo dos sons, revelando dimensões musicais inatingíveis em estado normal; e, se consumida em moderação, inexistia o perigo do vício; “esta vodca em cima da mesa, vendida livremente, sem restrição, acredite, é dez vezes mais perigosa do que o cigarrinho de maconha” (“se é tão perigosa assim, por que a bebe com tamanha despreocupação?”, pensou Sônia, pulga atras da orelha); “todo o alarde em torno da maconha na passa de manobra dos fabricantes de bebidas, com medo de perderem o monopólio…”
A indignação esperada não se fez sentir. Marcos teve a impressão de que se fizera compreender. Afinal, estava diante de uma garota esclarecida e artisticamente dotada, e não de uma suburbana qualquer. E, com a destreza com que exorcizara, momentos antes, o melancólico musicista, invocou-o novamente, e terminaram a noite abraçados, num banquinho em frente à praia, Sônia, cara de arpejo, tagarelando sobre mínimas, semínimas e dominantes, e Marcos, por sua vez, respondendo: “É… é…”
Sábado, dia de levar a namorada a um chopinho ou ao cinema. Renato, porém, estava sem namorada. Sábado, dia de sair com os amigos para paquerar. Os amigos de Renato, no entanto, já estavam comprometidos: Marcos, com a namorada, com quem iria ao concerto (“quer vir conosco?”, convidou educadamente; Renato agradeceu e declinou o convite; tudo, menos ficar “de vela”); Daniel, com seu grupo de estudos dos colegas do colégio (“você pode participar”, convidou, mas Renato não se entusiasmou pelo “programa de índio”); e Afonso… Depois do episódio da zona, três anos antes, em que Carminha elegera Afonso seu príncipe encantado, Renato desenvolvera contra ele um despeito que, com o tempo, chegara às raias do ódio. Odiava-lhe as qualidades de que carecia: as mãos nunca molhadas de suor, os cabelos lisos sem sinal de caspa, o corpo bem-proporcionado, o rosto de traços apolíneos… “Se fosse eu, estaria nadando em mulheres…” Doía em Renato saber que Afonso – como se vivesse em uma Pasárgada e fosse amigo do rei – podia se dar ao luxo de escolher a garota que bem entendesse: elas o consideravam um “pão”. Não que Afonso fosse de trocar de namorada como se troca de camisa. Pelo contrário, seus compromissos amorosos contavam-se nos dedos da mão, fato que realçava ainda mais a sua superioridade ante Renato.
Renato, por sua vez, não obstante os ares de gozador e bonachão, curtia a amargura do insucesso com as garotas. Cônscio estava de não ter sido aquinhoado com a beleza de Romeu, porém conhecia suas qualidades: entre elas, a capacidade de divertir as pessoas, de desanuviar maus humores através de chistes, pilhérias, facécias, “trocadalhos do carilho” (“Em vinte e um de abral, Pedro Álvares Cabril descobriu o Brasal sob um temporil que… puta que o paral! ou, Dona pata teve cinco patinhos: pata, peta, pita, pota e… Oscarzinho! ou, Alunos um, dois e três, façam o favor de ir ao quatro negro; cinco muito, professor, mas não seis nada; então sete-se aí e da oita vez novenha com desculpas! ou então, Conhecem o verbo mais irregular da língua portuguesa? Vou conjugar: Eucalol, tubarão, elefante, nós moscada, vozeirão e eles…tricidade!); e, afora seus dotes histriônicos, orgulhava-se do temperamento cordato, dos pontos de vista racionais, tolerantes e equilibrados, enfim, de um repertório de qualidades nem sempre comuns entre os moços; por exemplo, na escola, jamais convocara um colega “para brigar lá fora”, a recíproca também sendo verdadeira; além disso, guardava distância das gangues de rua que proliferavam no bairro e nas adjacências; talvez seu principal mérito residisse na capacidade intelectual: dono de raciocínio atilado, solucionava sem delongas intrincados enigmas matemáticos (seu livro favorito era O Homem que Calculava, do Malba Tahan) e manuseava a régua de cálculo com a destreza com que o mercador oriental manipula o ábaco… Vaticinava perspectivas brilhantes pela frente: não faria mau papel no vestibular e, decerto, passaria para uma universidade federal ou para a UEG; diplomar-se-ia com laurel; destacar-se-ia na vida profissional… Só que as garotas, com suas cabecinhas de vento, não estavam nem aí para essas coisas…
Sábado, dia de namorar no escurinho do cinema… Renato precisa desanuviar a cabeça, entupida de fórmulas químicas, leis físicas, teoremas matemáticos. Folheia o segundo caderno do jornal e escolhe a reprise de fita com John Wayne num cinema perto de sua casa, um bangue-bangue com todos os clichês do gênero. Toma a precaução de chegar no cinema cinco minutos depois de começada a sessão. O Jornal da Tela já está na metade. Sorrateiramente, dribla o lanterninha e escolhe um lugar bem na frente, na parte mais vazia do cinema. Terminado o filme, permanece sentado, retirando-se à socapa depois de iniciada a sessão seguinte. No escuro, ninguém o verá. Afinal de contas, “pega mal” algum colega da escola ou amigo ou conhecido flagrá-lo em pleno sábado de noite sozinho no cinema (como um babaca), sem namorada.
Afonso morava não muito distante de uma terma. Nos horários diurnos, donas de casa e dondocas vinham purificar os seus corpos (as almas já se encontravam perdidas) no ritual de massagem, sauna a vapor para dilatar os poros, sauna seca para eliminar as toxinas, ducha gelada para estimular a circulação, tudo isso entremeado de fofocas, disse-que-disses, maledicências e discussões de novelas.
Às seis da tarde – britanicamente – o alarido do mulherio dava lugar ao baticum ritmado de mãos e pés: era hora da ginástica. Executivos, profissionais liberais (de ambos os sexos), secretárias executivas vinham aliviar a tensão da azáfama sedentária nos gabinetes refrigerados – o telefone tocando a cada minuto e o diretor, vez ou outra, convocando para uma reunião idiota -, para, depois da ginástica, mergulharem na rotina mecânica do jantar acompanhado pelo repórter Esso, do término da leitura do jornal iniciada no escritório e, uma vez as crianças na cama, da qüingentésima vigésima primeira relação sexual com a esposa ou o marido (pensar na secretária ou no diretor às vezes ajuda), seguida pelo sono com sonhos angelicais (sonhar com a secretária ou o diretor também ajuda), recompensa dos justos, que os pecadores sofrem de insônia.
Um ou outro ginasta permanecia na terma uma hora ou hora e meia adicional, sob o pretexto de precisar perder uns quilos excessivos na sauna. Acabavam embriagando-se de cerveja e discutindo, em altos brados, as proezas do Fluminense ou as desventuras do Vasco ou se jactando de destemidas aventuras extraconjugais. A ruidosa conversação interrompia-se bruscamente com a aparição, na tela da TV, do apresentador do noticiário, que – contrariando o adágio bíblico de que nada de novo há sob o sol – magnetizava os brutamontes com novidades: tufões devastadores, terremotos violentos, vulcões em desassossego, aviões espatifados… tudo no exterior, que, no Brasil, vivíamos em uma ilha de tranqüilidade!
Após as despedidas do Gontijo Teodoro, as figuras simiescas de peitos peludos, barrigas proeminentes de cerveja e vozeirões tonitruantes se dispersavam, dando lugar a um terceiro grupo de freqüentadores: homens esbeltos, menos obesos e peluginosos, bebedores da fonte da juventude, os de trinta anos aparentando 25, os de quarenta, 33, e assim por diante. O tom de voz era de cochicho, a entonação, menos áspera e os assuntos, menos tacanhos: discorria-se sobre sessões de análise, filmes de Antonioni, peças de Nelson Rodrigues e quejandos.
Na hora em que Afonso chegava na terma, reinava ainda a balbúrdia dos executivos. Depois de se despir, guardar os pertences no escaninho, calçar as sandálias havaianas e se enrolar na toalha, isolava-se em um canto, dividindo sua atenção entre uma revista Manchete e as imagens na televisão (o vozerio tornava o som inaudível). Por que não chegava meia hora mais tarde?, perguntará alguém. Talvez o destemor existencial daquela gente o fascinasse. Era, porém, com alívio que Afonso ouvia o repórter da televisão desejar boa noite, espécie de senha para a debandada da turma. Como se obedecessem a ordens superiores, enfiavam-se, todos ao mesmo tempo, no vestiário para a consumação do ritual: salpicar de talco as axilas, os pés e os pentelhos, aplicar desodorante, vestir as cuecas, colocar as camisas, enfiar as calças, apertar os cintos, pentear os cabelos e deixar uma “cervejinha” na mão do roupeiro…
Restabelecida a paz sobre a terma, Afonso abandonava o seu canto, reconquistando o seu espaço: circulava da sauna a vapor à sauna seca, da sauna seca para a ducha, da ducha para a sala de repouso, para depois tomar uma água tônica no bar estrategicamente situado, de onde observava os companheiros. Na primeira vez em que fora à terma, encontrara-a literalmente vazia, talvez porque fosse segunda-feira. Na segunda vez, encontrou mais gente: sobre uma espreguiçadeira, tipo barbado com fuça de sociólogo mantinha o rosto semi-oculto atrás de um livro cujo título Afonso não conseguiu discernir; no lado oposto, conhecido ator oriundo do antigo Teatro Nacional de Comédia, cabelos grisalhos denunciando a meia-idade e cujo nome escapou a Afonso, movimentava a cabeça para cima, para baixo, para a esquerda, para a direita, num exercício para o pescoço. Mais de uma vez, a porta da sauna se abriu, deixando aflorar apolo adolescente que parecia se deleitar em desfilar o seu corpo por uma platéia aparentemente pouco atenta.
De um momento para o outro, Afonso teve a impressão de que o barbudinho o mirava, escudado pelo livro (conseguiu discernir: era de Otto Lara Resende). “Será que o conheço de algum lugar?” Sem sombra de dúvida, não o conhecia. “Deve ser impressão”, pensou. Lembrou-se de Marcos: “faz tempo que não o vejo; depois que começou a namorar a tocadora de rabeca…” Mas o provável sociólogo (poderia também ser um psicanalista) de barbicha não parava de fitá-lo. “Vou para a sauna”, tencionou Afonso. Encontrou a sauna a vapor excessivamente esfumaçada, trocando-a, toalha enrolada nos quadris, pela sauna seca. Estava vazia e o termômetro na parede marcava quase oitenta graus. “Temperatura ideal”, pensou. Sempre enrolado na toalha, sentou-se no segundo degrau do banco de madeira. O calor intenso provocava misto de prazer e relaxamento. Displicentemente, deixou que a toalha se abrisse, até repousar por completo sobre o degrau. Inopinadamente, a portinhola se abriu com pequeno rangido. Quem entrou na sauna? O psicanalista (ou seria sociólogo?), acompanhado de uma lufada de ar frio. As lentes de seus óculos se embaçaram, obrigando-o a retirá-los. Afonso teve vontade de se enrolar novamente na toalha, mas acabou não concretizando a intenção. “A sauna hoje está boa”, proferiu acacianamente o míope, enquanto tomava lugar ao lado de Afonso. “Com tanto lugar vazio, tinha de ficar do meu lado!” Algum anjo da guarda sussurrou ao ouvido de Afonso que se levantasse, mas prevaleceu a lei da inércia. Veio-lhe à mente uma anedota de viado que Renato gostava de contar, mas não conseguiu se lembrar do seu desenlace. Afonso sentiu um roçar como de uma barata sobre a sua coxa. Era a mão boba do barbudinho. A reação inicial foi de repúdio, logo neutralizada por salada psicológica de pena + uma pitada de acanhamento + um pouco de comodismo + (por que não revelá-lo?) o desejo perverso de tripudiar, de provocar a libido do asqueroso barbinegro, para se retirar na hora agá, deixando-o alucinado de desejo. Pasme, leitor, com os pensamentos depravados a desfilar pelo inconsciente de Afonso; faltaram as mãos de parteira do psicanalista para trazê-los à luz. Contudo, o feitiço se voltou contra o feiticeiro. A mão inicialmente repulsiva em pouco tempo passou a excitá-lo e o seu pênis, a se inflar. Eis que, de chofre, abre-se a porta da sauna, deixando entrar o ator de teatro e um sujeito avantajado, até então despercebido para Afonso, provável remanescente da turma da ginástica.
– A temperatura está ótima – trovejou o ator.
– Para nós brasileiros – respondeu o corpulento. – Um amigo meu, que esteve na Suécia, contou que, para eles, sauna de oitenta graus é frigorífico. Lá, tem de ser no mínimo noventa. (Na verdade, nenhum amigo estivera na Suécia, a história não passando de invenção.)
O pederasta barbudinho, que retomara a postura inocente de quem está na sauna para curar ressaca ou tirar barriga, entrou na conversa:
– É… Mas lá na Suécia, a sauna ainda é daquela tradicional, de lenha…
Para não se sentir deslocado, Afonso também arriscou o seu palpite:
– Aquela, sim, é que faz bem à saúde!
A seguir, levantou-se (contrariado? frustrado?) e, depois de prolongada ducha, acomodou-se sobre uma espreguiçadeira, pregando os olhos na televisão, que exibia um seriado. O barbudo logo retornou ao seu canto, mergulhando no Otto Lara Resende. Na rua, a caminho de casa, Afonso resolveu: “Foi a primeira e última vez. Não quero me meter com essa gente.” Na cama, às voltas com o sentimento de culpa, teve dificuldade em adormecer.
Dois meses depois da boa nova da duplicação da mesada, o pai de Marcos voltou a chamar o filho para nova conversa “de pai para filho”. “O que será desta vez?”, indagou-se Marcos, para quem o pai era uma figura ao mesmo tempo íntima e distante, como um estadista que acompanhamos através das notícias nos jornais e dos pronunciamentos na televisão, mas com o qual mantemos um constante “diálogo”: “Bravo, senhor fulano de tal, é de atitudes assim corajosas que precisamos!” ou “Assim não dá, senhor beltrano, o senhor está começando a pisar na bola!” Apesar das emanações de maconha cada vez mais constantes de seu quarto, dessa vez não passou pela cabeça de Marcos que pudesse ter “dançado”.