O biguá estranhou aquelas gotículas de sereno transformando-se em gelo sobre suas asas brancas, logo no primeiro raiar do sol. Também estranhou a fumaça, igualmente branca, entre as árvores, sobre o curso do rio, descendo grossa pelas encostas dos morros, a tudo fazendo mais branco; indo longe… muito longe… até consumir-se no horizonte em cor de fogo.
E deixou a árvore onde estava, alçando vôo lento, de asas entorpecidas.
O frio era muito. O instinto dizia-lhe que se movesse, que batesse as asas fortemente; dizia-lhe que era preciso voar, aquecer-se e libertar-se daquela morte cristalizada sobre si; deveria voar muito alto, esforçando-se no frio intenso. E penetrou mais fundo na neblina. Suas penas se impregnavam de umidade e mais se molhavam; tornavam-se mais brancas, mais pesadas, e se congelavam ao vento. Perto, somente as copas dos pinheiros, de altura estranhamente insuperável, e o chão esbranquiçado que o esperava com paciência. Tão longe, numa distância inatingível, o calor que lhe fugia.
Outros biguás, fracos, simplesmente se deixavam cair de seus galhos, resignados; sumiam naquele branco que disfarçava o campo e o rio; morreriam, mais brancos ainda, e ficariam naquele chão branco, talvez debatendo-se menos e menos até que, envoltos pela neblina, finalmente os seus olhos estariam petrificados, mirando do sol, transformados em adornos de gelo.
Era preciso voar, mover-se! Voasse mais alto! Muito acima da névoa! Longe da morte branca; longe do frio; longe da neblina espessa que recobria a tudo; que congelava, queimava, matava de frio no amanhecer. Voasse, voasse… mais alto no sonho da sobrevivência! Batesse as asas até não mais suportar… para vencer o frio. Era preciso que superasse a dor! Era preciso que tentasse viver! Era preciso que atingisse o afogueado no horizonte… era preciso só algum calor… e muita força na ilusão de estar conseguindo alcançá-lo.
Mais lentamente foi voando; um movimento de quase planar, eventualmente perturbado pelo instinto de viver a comandar-lhe algum bater das asas. Tão insuficiente era o instinto de viver… não lhe bastava para comandar a vida; o senhor dela era o frio da neblina espessa e invencível, sem misericórdia, a amanhecer revelando-se cúmplice de um sol frio e indiferente.
A vida em movimento, na sua última sensação, a dor, finalmente deixou de existir. Impossível sentir a dor, pois era impossível o bater asas tão pesadamente inexistentes… e voar.
Restou-lhe o também se deixar cair… para dentro da neblina.
Asas congeladas; asas que se tornaram inúteis na vida, numa vida vencida; asas derrotadas… Não! Congeladas e abertas, até o final assim permaneceriam e testemunhariam a sua dignidade e vontade de viver, o seu derradeiro vôo pela vida. Seus olhos também ficariam bem abertos para que vissem, no final como todos, o distante lugar do sol; que se petrificassem, aprisionando alguma luz, e vissem, frente-a-frente, as névoas da morte branca; a vencedora que também o veria morrer, com aquele olhar, como o dos outros biguás, dizendo-lhe, até depois da morte, que houve um desejo de calor e de busca por um sol verdadeiro, que houve motivo no seu vôo até o fim da vida. A morte branca seria enfrentada até o último instante possível. Terminaria a vida entregando-se a ela e a tudo o que fora visto durante a seu vôo: uma branca crueldade, entorpecimento na beleza e brilhos fatais. Morreria como ave que voa, não como mais um corpo, simplesmente, caído, rígido e encolhido pelo frio.
O biguá, assim, desapareceu na neblina, mergulhando na água gelada do rio.
E percorreu um hiato negro mais espesso que as névoas da morte branca, entre o final da queda e a profundidade atingida com o seu mergulho, para ressurgir… para renascer, na superfície… negro!
Estranheza maior ainda! Daquela morte branca, a certa, fez-se um renascer em incompreensível vida negra, incerta na superfície do rio; vida nova, sua, rapidamente aprisionada por incontáveis garras, gigantescas e pegajosas, também enegrecidas como tudo se mostrava agora, nesse outro lado, além da morte branca e onde já sentia, novamente, a dor da vida. Vivo! Eram negras as asas! Molhava-se com água negra! Via negra a fumaça… Não mais existia aquele infinito e inatingível espaço, onde sempre voara até o curvar da claridade; agora, liberto das garras, tudo se tornara escuro, hermético, em todos os seus limites, muito próximos, facilmente tocado com o bico negro, sem vôo, sem penas brancas e leves… O sol, estranhamente tão perto, podia ser tocado; era pequeno… era estranho. Unira-se ao inatingível, ao sol; experimentava-o perto dos olhos, sentia o seu calor, a sua forma… e via, através dele, que tudo era negro. Nesse espaço negro, bastava-lhe um corpo negro, de um novo início de vida, negra, sem vôo, sem distância.
No seu último vôo, dignamente enfrentada a morte branca, ganhara calor e salvação naquela passagem negra. Estava tão perto daquele novo sol! Pequeno e morno… Passara para um outro estranho lado da vida, agora negra, e esse verdadeiramente o seu tempo presente e que se tornaria, no futuro, um falso passado.
O passado, aquele verdadeiro, não mais existiria, assim como os cristais de gelo nas asas, todos desfeitos; seria como o apagar do brilho de olhos que, ressecados sobre a terra, não mais testemunhariam o desejo de um pouco de sol e de calor nos estertores do frio entorpecente, cruel e de brilhos mortais.
Seria esquecido na escuridão absoluta, como a daquele hiato negro; estaria aprisionado por garras negras, sob um sol falsificado, esquecido o frio, esquecida a morte branca. Tantos, e todos, no verdadeiro passado, esquecidos e caídos, mortos, enregelados, petrificados no chão esbranquiçado, sem uma única oportunidade de passagem, como a do feliz biguá negro.