Tenho vivido um tempo de valorizar pequenas simplicidades: surpreendo-me a admirar sobre a toalha da mesa vazia uma única e tão bela e solitária colher com seu espelho que me reflete ao contrário. Ou ponho-me a observar uma pequena e única flor vermelha que pende do caule exausto que a sustenta a ponto de quase – por tão pouco – tocar o chão.
Às vezes, fecho os olhos para que uma música me toque fundo, fundo, e como uma espada alcance o cerne do meu ser, que vibre tão alto dentro de meu peito, que me desperte sensações de quando tudo era mistério e eu quase não sentia a dor do mundo.
Tenho vivido um tempo de doçuras inesperadas: eis que me trazem de presente um jasmim-do-cabo e seu perfume, eis as delicadezas de quem me compreende, ama e acolhe. E eu, que acredito em multiplicação dos pães , das pedras e das flores, coloco o pequeno, o quase minúsculo caule em cristalina água. Eis, então, que a natureza traz a raiz, eis que planto a pequena muda e eis que brota já, meus amigos , a primeira folha do que será o arbusto e suas magníficas folhas de esmeralda.
Eis, então, o milagre da vida.
Tenho vivido um tempo de grandes esperanças: acredito em muitas coisas tidas como impossíveis, vislumbro contornos de saídas fáceis onde há grandes obstáculos intransponíveis, eu sei, mas finjo que tudo vai dar certo, que Deus vai comigo e me segura pela mão, que não vou tão sozinha, e tudo acontece como eu planejara, que é tão fácil viver, que faço parte desse jogo maravilhoso e sou como qualquer pedra, planta, estrela, essas coisas do Criador.
Tenho vivido mais para dentro que para fora. Habito meus próprios meandros, meus jardins labirínticos, com seus bancos de pedras e suas portas falsas. Mas, por sorte ou por destino mesmo, as portas que abro são sempre as verdadeiras. Penso nos pandas, nas araras azuis, nos micos de todas as espécies, amanheço com saudades da Mata Atlântica, das praias limpas, das bromélias que existem apenas nas cavidades perigosas que pairam sobre os abismos. Mas penso também nas crianças famintas, nos homens sem emprego, nas mulheres que amamentam com seu próprio sangue, nos olhos infantis que se apagam diante de todas as violências do mundo, nas mesas vazias onde sequer rebrilha uma colher, nos pratos sem nada, nos trapos que se vestem.
Tenho me surpreendido em contato íntimo com tudo: sei onde brilha a lágrima de júbilo e de remorso, aprendi a ler timidez e alegria nos sorrisos, a ver quando uma sobrancelha inclina-se interrogativamente, quando uma testa se franze, um olho se fecha, uma mão se contorce de prazer ou dor. Às vezes, sozinha dentro do carro, atravessando o meu pequeno mundo, uma seta me atravessa e um pouco mais que ontem provoca-me dor, convulsiona-me a alma, rompe meu coração em dois.
Às vezes, ouvindo a música do mundo, subo sobre o cavalo do carrossel que me leva, me leva, me leva… E embalada, confortável, sinceramente alegre, esqueço-me por instantes dos meus iguais, de seus gritos de medo e de dor, de seus lamentos de fome, Às vezes, como a vida é meio mãe, meio madrasta, recebo de presente um jasmim. Como se fosse um código e me lembrasse que sou humana e meu coração ainda existe. E que seu perfume acabe por apagar um pouco o que há de rude, feio, triste, desesperançoso em mim.