Tirou a capa preta com que se fantasiava todo o dia, ao iniciar sua tarefa. Capa longa, amarradinha no pescoço e que dava a ela uma infinita proteção. Vestindo-a, era como um cavaleiro da idade média, ou mínima, embora ela vivesse na idade máxima. Ao final do dia, terminando sua última tarefa, precisava despir-se daquela armadura. Isso era um ato difícil, pois sobrevinha uma avalanche de medos, culpas, arrependimentos, frustrações.
À noite, tinha que agüentar calada, a visita insistente das bruxas do Grande Tribunal, que vinham para incentivá-la a prosseguir firme na jornada do dia seguinte. Há muito tempo não era mais visitada por anjos. Nem mais lembrava como eram… Mas todas as angústias iam embora no dia seguinte. Enfiava-se novamente na armadura preta da mais pura seda.
Andando pelos labirintos do vetusto edifício, cruzava com outras armaduras de seda preta. Ninguém sorria, pois jamais houve motivo para sorrir. Encaravam-se simplesmente. Olhos opacos, até um ar de tristeza, mas um ar superior.
Nos corredores, o mundo de injustiçados se espalhava e aguardava, trocando cochichos e impropérios à boca pequena. Um arauto intrépido, berrava os nomes da chamada. Dois pequenos grupos se levantavam e entravam. Um sorria, outro chorava.
Na mesa, imponente e confiante, o serviçal colocava uma venda preta nos olhos da impávida mulher de armadura de seda preta. O silêncio indicava que a justiça ia ser alcançada.
A sala toda era de uma limpeza impecável, mas num canto, uma balança de dois pratos, estava abandonada há muito tempo. Visivelmente enferrujada exibia muitas teias de aranha, dando um ar de desprezível obsolescência.
Sobre a mesa da mulher de armadura, dois vasos de vidro finíssimo. Um com a boca muito larga, outro com a boca muito estreita. O representante do grupo sorridente, foi chamado a colocar a mão direita dentro do vaso de boca larga, e lá deixá-la até segunda ordem. A mão entrou com facilidade óbvia e lá permaneceu confortável e folgada. O representante do grupo triste foi também convidado a colocar a mão, porém a esquerda e dentro do vaso de boca estreita. A mão não entrava e a mulher de veste preta e venda nos olhos, espiou por baixo da venda e ajudou com força, enfiando a mão renitente. Ao sinal do meirinho, ambos foram convidados a retirar suas mãos. O grupo sorridente aplaudiu a facilidade com que seu representante saiu, livre e flamulante. O outro não conseguia tirar a mão. Foi condenado a viver com o vaso até o fim de seus dias. Justiça feita! O protesto nada adiantou.
A juíza, apoiada pelo juiz invisível, dedos em riste, afirmaram juntos, no mais celestial jogral:
O vaso falou, tá falado! Ide, e cumpri seu castigo!
Ouviu-se um rangido no canto da sala. Lá naquele canto que guardava a museológica balança. Mas, ninguém parecia ter ouvido! Eu ouvi!
Não agüentei mais. Arrependido de não ter ido direto para minha praça, para meu banco favorito, olhar a vida caminhar solta pelo mundo. Não! Tive que ter essa maldita idéia de ver como estava funcionando um dos nossos tribunais.
Saí correndo como um louco e cheguei ofegante no meu banco costumeiro. Lá, as pessoas passavam e passeavam. A grande maioria nunca precisou dessa mulher da armadura preta. Por isso caminhava segura de que, se um dia precisasse de justiça, ela estaria lá, pronta como uma deusa, sábia e justa, produzindo com esmero e técnica, o mais puro equilíbrio da balança. Nem de longe desconfiava da existência do vaso largo, do vaso estreito, da balança enferrujada, da armadura…
Espiei com descaso para meu jornal ainda dobrado, já meio amassado pela correria, molhado de suor e lágrimas e vi e não acreditei. Tirei os olhos dele percorrendo outras paragens, mas era impossível não voltar a ler e confirmar. Estava mesmo escrito com todas as letras. Eu juro que estava. “PRODUTO INTERNO BRUTO CRESCE COM A PROSPERIDADE DAS FÁBRICAS DE VASOS DE VIDRO DE BOCA ESTREITA”. Mais embaixo, uma pequena notícia falava do relaxamento da prisão de um juiz trabalhista que andara roubando alguns milhões.