Nada termina, descubro. Nem séculos, nem dores, nem histórias. Tudo flui e reflui como um grande rio. Um século termina, um ciclo terminará. Por isso mesmo portas se abrem e se fecham, tal como o nosso coração que se abre ou se fecha às coisas do mundo, ignorando os fatos ou as aflições. Às vezes, descubro, temos um coração que é entre a serpente e a flor.
Quero escrever coisas danadas, coisas que gritassem ou ferissem fundo; mas descubro que palavras nada valem: palavras não movem mundo, palavras são apenas e tão-somente palavras. Aos poucos, perco a agressividade de que me dispo; jogo fora os soluços e o silêncio, não quero mais o que me faz sofrer. Aos poucos, recupero uma paz que nunca andou distante, estava diante dos meus olhos, era preciso ver. Apenas ver.
Se eu pudesse viver parte deste século outra vez, passaria os meus dois últimos anos lendo mais, mais dentro desta biblioteca. Abriria livros ao acaso, leria histórias, casos, fatos e estas histórias jamais seriam minhas, mas teriam entrado dentro do meu coração sem ferir tanto. Há histórias de espinhos, gaivota.
Minha alma, neste fim de século, gaivota é.
Minha alma voadora, gaivotas com seus crééééééééésss ensolarados, voando mansas. Minha alma é beija-flor, libélula. Minha alma é tudo o que voa, o que sonha, o que quer e desafia. Alguém me escreveu: não perca a sua alma vento… não, não perderei.
Sou, descubro, uma colecionadora de lembranças. Mais castor do que gaivota, minha alma coleciona cada gesto, som de voz ou olhar. Coleciona também o que é negado, guarda; no mundo nada há que se perder.
Minha alma , neste fim de século, voa.
Voará no outro que vem chegando, voará sempre, voará.
Dobro o que não quero mais, coloco num cofre, tranco a porta, engulo a chave, perco os códigos, senhas.
E saio andando, quieta e concentrada. Procuro pedaços de jardim, olhares, cabelos ao vento. Um banco, uma boa conversa, um livro. Haendel. Procuro o que não vi, o que não sei. Não tenho planos. Pela primeira vez não tenho planos. E deixo acontecer. Vou ao encontro do novo século com estes meus olhos perguntadores, agora mais atentos. Vou sem medo porque nunca me neguei, nem me menti.