(….) “Sempre há algo que escapa, escamoteado nos interstícios que proliferam interminavelmente. (…) O arquivo não será jamais a memória… a impaciência absoluta de um desejo de memória… memórias da morte… o último capítulo da vida dos homens infames.”
– Maria Angélica Melendi – Suplemento Literário Minas Gerais – Janeiro de 2001.
A busca arqueo-genealógica da camada original do tempo (e do paraíso perdido) nos recoloca diante do nunca visto, do nunca vivido e do esquecido invisível. E, assim, aturdidos com a alvura perolada das paredes sepultas, olhamos o indicador braço angelical, entre os estertores arquejos de desprendimento sereno de quem ousa ligar primórdios, exórdios e aquilo que, no fim, expiramos. (…) Sêneca, o espanhol, foi o precursor de Luis de Góngora, de Calderón de La Barca…. almas representativas da pungente alma hispânica.
As paisagens e os cenários são labirintos móveis e caleidoscópicos, horizontes efêmeros de nossas histórias e memórias. Restaura-los ou recria-los é também destruí-los, desconstruí-los, dissecá-los, escarná-los…. encharca-los de sol e de sal, prepara-los para imaginárias provisões futuras. Imagens providenciais.
Uma loção dominical, um hálito de ristorante italiano, nuvens de fumaça de incenso em liturgias católicas, meus sapatos pretos e meias brancas, sons de sinos conclamando fiéis, cenas de filmes neo-realistas de Rosselini. Cenas nas quais me incluía até que, empurrando aquelas pesadas e mofadas cortinas de veludo vermelho do cinema, estonteava-me a luminosidade exterior.
Estou desanimado com as novidades e nem reivindico a condição de arauto do novo. O novo, o povo, o ovo e o novelo não existem mais: viraram novelas, ou macabras movelarias geridas por noviças zeladoras do bombardeado arcabouço de uma abadia medieval. Só Goya me entenderia.
Em breve virão as enchentes das goiabas e, com elas, os passos da Paixão, da Semana Santa (fim da Quaresma com aqueles cheiros de manjericão). O Papa é pobre. O Papa foi Pop? Fantasmas que se arrastam nas bordas dos campos da podridão não nos são cotidianamente visíveis. Homenagear os malditos do passado é também uma elegante forma de condenar ao esquecimento e à marginalidade os escritores não legitimados no presente. Para mim, o teatrólogo Qorpo Santo, de certa forma, prenunciou a estética leveza jocosa de Mário Quintana, o rejeitado pelas almas do mausoléu de Machado de Assis.
Muro branco, céu palidamente azul, com brancas e bojudas nuvens de algodão, muito calor, cadelas estiradas dormindo na varanda e uma vaga lembrança do cego cachorro boxer que Picasso mantinha num dos seus castelos do sul da
França…. tudo passa, mas tudo pode voltar, ou irromper em nossas barragens de memórias inglórias, esfumatas.
Sombrias ou vibrantes, tanto faz. Mas, quase sempre, profundas, labirínticas e fugidias.
Justificar seus interesses e tramas é vestir-se, é mascarar-se, é aferrar-se àquilo que julga garantir sua sobrevivência, mesmo introduzindo-lhe contradições e conflitos mais sofridos, talvez até insanáveis. Ética e Estética seriam inconciliáveis? Preciso reler algumas obras de Ítalo
Calvino e o Tratado do Sublime de Dionísio Longino. Nossos interesses podem ser dignos ou defensáveis, mas jamais inarredáveis. Ser socrático no mundo atual continua sendo um suicídio.
O mito e o medo andam juntos e é impossível evitá-los. Júlio Cortazar tinha razão.