Por Que os Ricos Querem Que Eu Tenha Internet

Aqui estou eu neste terreno baldio perto de casa, com menos de 1.200 calorias diárias, treze dentes na boca e sem o Primeiro grau completo. Ainda consigo me divertir rolando um pneu velho de lá pra cá e, se o mosquito da dengue não me pegar, semana que vem vou continuar subindo naquela árvore ali.
Gozado, ontem, lá de cima, do último galho, vi que a auto-estrada vai passar bem aqui atrás do terreno e tudo vai mudar ao redor. Estão construindo um posto de gasolina onde dizem que vai ter uma loja que venderá chocolates, biscoitos salgadinhos e aquelas revistas da tevê. A parabólica já está lá no telhado. Tá vendo ?
Bem aqui do lado do terreno já começou a subir um pequeno shopping que terá 10 cinemas e uma loja do Mc Donald’s. Todo o segundo andar será destinado às lojas especializadas em informática, e aí eu vou poder comprar meu computador em 24 suaves prestações. E o mais legal é que o telefone está chegando quase de graça aqui na favela, e aí vou poder entrar na Internet. De-mo-rou !
Tenho 14 anos incompletos e, às vezes, quando chego com a galera pra jogar bola no terreno, tem um parceiro desovado pelo movimento. O cara pode ter vacilado ou tombou na disputa com outra facção. Minha mãe diz que a Igreja é que está me salvando, mas a cada dia fica mais difícil não entrar. Tenho um outro parceiro da minha idade que ganha 10 vezes mais que os pais, tem duas automáticas cromadas, mina pra cacete e um tênis de marca no pé.
Há uma semana venho distribuindo folhetos na campanha de reeleição do Prefeito. Pode pintar um trampo de contínuo na Vigilância Sanitária. Este novo shopping, por exemplo, não tem estação de tratamento e vai jogar toda merda no rio que passa aqui atrás. Mas dizem que os países ricos se reuniram no Japão e resolveram dar computadores e nos colocar na Internet para diminuir a grande distância entre eles e a gente. Qual é malandro ? Querem perdoar até a nossa dívida externa ? Esse papo está cheirando meio 171. Aqui na favela, se você fica devendo e não paga, o movimento lhe passa o cerol.
Meu sonho é ser astronauta ou repórter da TV Globo, porque sou ruim de bola e não sei cantar pagode, mas, se eles nos derem Internet, talvez eu faça um desses cursos à distância. Mas outro dia um gringo de uma ONG não-governamental pintou aqui e disse que eles estão mesmo é enrolando a gente para controlar tudo – do estoque da tendinha do Zé da esquina à aposentadoria da minha velha -, pois a Microsoft fez um acordo com a Dataprev para saber quantos de nós estão no trampo oficial, quantos ganham salário mínimo, quantos nascem, quantos se aposentam, de que caímos doentes e quantos de nós partimos dessa para melhor.
Talvez este seja o caminho enviesado da Terceira Via para que cheguemos ao desenvolvimento. Afinal, eles são ricos, sabem o que é bom para a humanidade e devem ter um pouco de compaixão por nós, os excluídos. Nada mais justo que também possamos participar dessa nova economia. Se não for assim, qualquer hora um idiota igual a mim vai estar dentro de vala negra, com um celular ligado à Internet, um buraco no estômago e urubu de soslaio espreitando o último bite de suspiro. Se tiver força, meto o dedo nos teclados, conecto-me com a NASA e mando eles enfiarem o cabo do mouse no rabo do foguete que vai pra Marte.
Se sobreviver ao holocausto, viro predador subterrâneo emergindo à noite para suprir minhas deficiências calóricas com a carne saborosa que estará circulando pelos shoppings. Nós seremos a resposta mutável da espécie que não sucumbiu ao desenvolvimento tecnológico. E nas ranhuras do sacrossanto canto do meu saco estará o código criptografado de acesso aos portais do Universo, com ou sem Internet e com as diferenças entre eles e nós aumentando na mesma proporção em que as galáxias se afastam umas das outras, como previu Einstein na sua constante cosmológica.