Os Italianos E As Conservas

Em função do rigoroso inverno, desde longa data as famílias européias se obrigam a dominar as técnicas primárias de conservação de alimentos. A busca de condimentos que, além do sal, conservassem e dessem sabor aos alimentos motivou inclusive todo o ciclo das grandes navegações, em busca das especiarias orientais.
Os italianos em Poções, imbuídos deste traço cultural procuravam transformar, de forma artesanal e familiar alguns alimentos perecíveis em conservas duradouras.
Em nosso quintal havia um pequeno cercado em que se engordava um ou dois porcos. Os grandes restos de comida iam para eles e acompanhávamos curiosos o crescimento daqueles animais sem graça. Quando meu pai achava que era chegado o dia iniciava-se os preparativos. Vitalino vinha com outro camarada, do armazém, e afiavam calmamente uma grande peixeira na pedra de amolar, jogando água para o fio ficar doce. No fogão de lenha que ficava no quintal de cima Joaninha, a empregada, já havia colocado um grande caldeirão com água para ferver. Lenha havia em abundância no chamado “quarto da lenha”, onde havia também um monte de carvão que, certa feita, durante um aniversário, eu Carlos e Luizito tocamos fogo, criando um pandemônio.
No meio do quintal havia um cimentado, uma espécie de “altar” para sacrificar porcos, e para lá ele era levado, sob protestos e altos berros. Para nós era um contraste a gritaria que o porco fazia antes e o silêncio em que ficava depois que Vitalino, segurando-o firmemente pelas orelhas e com os pés já amarrados, encostava primeiro a ponta e depois enterrava toda a lâmina da peixeira no pescoço, procurando atingir a jugular. Para não ter de introduzi-la outra vez ele preferia agilmente tentar fazer com que a lâmina remexesse dentro do talho.
O sangue que jorrava era cuidadosamente aparado por nós em uma panela com vinagre e mexido com uma colher de pau, para não qualhar. Era para fazer o “sanguinaccio”, um delicioso creme onde até o caldeirão usado era depois disputado por nós para ver quem o lambia. Depois de pronto e despejado em diversos pratos era guardado a chave . Fazia parte do ritual mandar um prato de “sanguinaccio” para cada tia. O segredo do doce estava em seus ingredientes : maizena, chocolate, açúcar ,casca de laranja e uva passa. O de tia Josepina levava arroz, o que era uma variante. Uma outra variante inusitada foi no dia em que mandaram eu ir buscar açúcar na loja, que na época vendia secos e molhados. Ao invés de apanhar o açúcar peguei o sal, que tinha embalagem semelhante, de papel, que era feita na própria loja. Depois que colocaram o sal no “sanguinaccio” ninguém acreditou que eu não havia feito de propósito e o castigo foi ficar preso em um minúsculo sanitário das empregadas, onde peguei no sono.
Finda a sangria iniciava-se o péla porco: jogava-se a água fervendo em cima, e os camaradas raspavam todo aquele pêlo e depois esfregavam caco de telha para a pele ficar bem limpa. Nas dobras onde era difícil raspar se chamuscava com fogo. Os cascos eram arrancados depois de aferventados com água quente, e o rabicho ainda ficava lá.
Um corte então era feito do pescoço ao anus e o peito era aberto a machadadas. Com perícia retiravam-se os intestinos, tendo o cuidado de extirpar o fel que, se rompido , iria estragar toda a carne. As tripas eram todas limpas, aferventadas, raspadas e reviradas, pois serviriam para fazer a lingüiça. Tudo que ia sendo retirado era repassado para o batalhão de ajudantes, constituído pelas tias, empregadas e nós, a garotada. A carne era moída , condimentada e colocada em enormes gamelas para depois encher as tripas. Usava-se espinhos de laranjeira para furar as tripas fazendo sair o ar. Quando não se fazia lingüiça tia Francisca fazia uma tripada famosa. As lingüiças ficavam penduradas na despensa, com proteção contra os ratos até estarem curtidas e prontas para se comer. A cabeça ­ ou fuçura ­ do porco era rachada a machado e Vitalino levava para ele juntamente com a buchada.
Na época em que, na fazenda, havia grande produção de marmelo e a nossa despensa estava cheia, marcava-se um dia para se fazer o doce de corte. Primeiro Joaninha colocava para cozinhar em um grande tacho de cobre, no fogão a lenha , e depois passados em grandes peneiras de palha. Em seguida, aquela pasta voltava ao fogo, onde borbulhava sob intenso calor e as empregadas mexiam sem parar com enormes colheres de pau, ao tempo em que se misturava o açúcar na mesma medida da pasta. Quando ficava no ponto era então despejada em fôrmas de alumínio que tinham a forma de peixe, cacho de uva ou simples retângulos. Depois de resfriada retirava-se das fôrmas, passava-se álcool e os doces eram revestidos de papel impermeável e transparente ­ celofane ­ e guardados no armário da despensa.
No quintal havia um grande forno a lenha, onde se fazia pão e principalmente “fresa”, um tipo de pão seco, redondo com um furo no meio, de grande durabilidade, que comíamos amolecendo em um caldo que tivesse azeite e temperos. Com a fresa ou com pedaços de pão dormido era feito o “panicoto”, onde o caldo era quente e continha ovos , tomate e muito alho cortado.
Junto a este forno havia uma torradeira de café que consistia em um cilindro de ferro que era aquecido a lenha. Com uma manivela manual fazíamos o cilindro rodar, para não queimar o café. Os grãos vinham da fazenda e haviam passado pelo armazém, onde as “catadeiras” já haviam manualmente feito a limpeza. Depois de torrados os grãos eram moídos em uma máquina que ficava na despensa. Ela, por ampliar a rotação através de engrenagens , permitia que nós também moêssemos o café, girando a manivela com as duas mãos. O café era tipo exportação, de primeira qualidade, e o cheiro era tão bom que minha mãe tinha o mau costume de passar café duas vezes com o mesmo pó !
O jenipapo era utilizado para se fazer o licor, que era um sucesso no São João. Minha mãe fazia também licor de uva e de leite. Para se obter o vinagre havia um pote em que se colocava bananas ou uvas, e aguardava-se pelo processo natural de fermentação. A banana era também cortada de comprido e colocada ao sol para ressecar, sendo guardada depois com açúcar e canela. O tanque era o lugar predileto para se colocar as peneiras com as bananas. Por vezes, ao manda-las recolher minha mãe as encontrava quase vazias, pois havíamos comido as bananas- passa.
Do leite, vindo em abundância da fazenda diariamente em grandes latões no lombo de jegues, era feita a manteiga, a ricota e o queijo cilindró. Havia uma grande cabaça comprida que servia para bater o leite qualhado e na janela da cozinha ficava pendurada, em um saquinho de pano, a ricota que escorria o soro.
A conservação dos ovos era mais simples, pois bastava arrumá-los dentro de caixotes, entre camadas de areia.
Quando o preço do tomate estava baixo minha mãe comprava alguns panacuns e os tomates eram então aferventados, peneirados, indo novamente ao fogo e depois engarrafados, tendo-se o cuidado de colocar azeite doce por cima, antes de fechar o frasco, para poder conservar.
Preparados para um inverno que nunca chegou os italianos se divertiam em saborear durante todo o ano as delícias das suas conservas. Quando, já internos em colégios de Salvador comíamos economicamente um pedaço de lingüiça, que a família havia enviado por algum portador, parecia que, em um fugaz instante, estávamos em Poções.