Lá no sertão é crença comum que quando se vai levar um defunto para enterrar, não se pode parar. Pra nada. O morto tem que estar sempre em movimento. Sempre pra frente. Se os carregadores querem fazer mal a alguém é parar com o defunto nas terras desse alguém ou na frente da sua casa. É desgraça na certa para o dito cujo. Por isso donos de terra ficam de butuca quando passa carregamento de defunto. Até tiro dão se há ameaço de parar. Os carregadores têm que ser rapidinhos. Dar sossego depressa à alma do morto pra o distinto não ficar com raiva nem vagando por aí.
Pois bem. Num certo dia de janeiro, eis que morre o Deusdete. Homem novo ainda. Cufou por causa do barbeiro. Choro para os parentes e pesar entre os amigos. Defunto tinha que ser enterrado. Xico Vitrola, seu amigão do peito, arruma mais cinco para carregar o corpo do Deusdete até o cemitério de Tabuí. Caminho longo de quatro léguas. Botam o defunto numa rede, onde passam uma vara bem grossa e, dois a dois, vão carregando o amigo até a cidade dos pés juntos. Cansaço muito. Diminuem um pouco a marcha e andam e andam. Tardezinha chegando. Pispiando a noite vêem que não dá para chegar a Tabuí antes do fechamento do cemitério. Negócio é descansar e continuar no rompante da manhã.
Cada um se ajeita como pode. Morto fica num canto. Puxam o ronco. Cansaço dos diabos. Só o Xico Vitrola, pesaroso com a morte do amigo e medroso como ele só, não consegue pegar no sono e fica apreciando a lua cheia toda brilhosa no céu. Lá pelas tantas, com os olhos ainda arregalados, vê uma coisa que o deixou de cabelos em pé. O morto parece que se levanta e vem caminhando em direção ao grupo de amigos, no rumo dele. Passa por cima de um, assim meio no ar. Passa pelo outro e mais outro, até passar pelo quinto. Tudo muito de leve, parecendo fantasmado. Quando Deusdete vai passar por cima do Xico, este não se contém e apronta o maior berreiro, soltando os gritos represados na garganta:
– Pra cima de mim não, coração! Por amô de Deus, Deusdete! Vai pro seu corpo, diabo! Cruzcredo!… Avemaria!… Creindeuspadre!…
Com a gritaria do Xico da Vitrola, companheirama acorda pedindo explicação. Que foi? Que que não foi? Deixa disso, minha gente! Nossa Senhora da Aparecida! Explicado bem explicadinho alguns acharam graça e outros ficaram com a pulga atrás da orelha, preocupados. Um deles foi o Ocride:
– Óia, gente! Isso é castigo de Deus. O morto num discansô até agora porque a gente num interrô ele. Deusdete deve tá divera puto da vida cagente!
– E o diacho é que ele passô inriba de nóis, né sô? Isso é mau siná. Queira Deus que certas coisa qui o povo fala seja só boataria…
Foi o que conseguiu completar João Bentinho, todo cismado, o primeiro que o espírito do Deusdete passou por cima. Daquela hora pra frente ninguém mais dormiu. Só o Juca Morais é que ainda, de madrugadinha, conseguiu tirar uma pestana. Afinal, ele não acreditava nas lorotas que o povo contava.
– Uai, sô! Dexa de bobage, gente! Larga de mão disso! Quem morreu, morreu! Num vorta mais. O Xico tava era com sonhação!
Na metade da manhã chegaram com o corpo frio e duro do Deusdete no cemitério. Enterraram o amigo. Passaram num boteco para molhar a goela e se mandaram de novo, estrada a fora, rumo do sertão, cada qual pro seu canto.
Xico Vitrola, naquele ano, teve que fazer o mesmo trajeto de carregamento de defunto mais cinco vezes.