Não sei se isto é um conto, uma crônica ou uma receita de culinária. Só sei que é uma homenagem, que ontem enterramos o velho Cirilo, um português do Minho, pai da Beatriz Caminhão. Ao que sei tinha ele morrido de velho, assim como quem apenas desiste, sem mais aquela…
Ajudei no que pude, só não peguei em alça de caixão. Tampouco encarei o morto de frente, que morto tem em mim um efeito danoso, me põe diante do quadro inexorável da brevidade humana, e eu não gosto nada disso. Também não gosto do cheiro de flores quando se mistura com o odor de cera de velas. Além de um certo medo, me dá uma espécie esquisita de sono…
Sei que um dia, a contragosto, também embarco nessa viagem só de ida, mas, por enquanto, esperneio o que posso. Não aceito com tranqüilidade a idéia de acabar assim, sem aviso, sem mais nem menos, sem deixar recado, sem opor resistência…
Depois do enterro, no qual fui um espectador devidamente compungido, resolvi que fazia minha ronda pelos supermercados, em busca de… comida! Que estou vivo! Para provar que ainda existo, que morto não come, morto é comido!
Sou assim, fazer o quê?! Enquanto uns pensam na morte, eu penso na vida… em comida boa, bebida gostosa, temperos ardidos…
Entrei no meio do burburinho de gente com carrinhos cheios, trombei com matronas afobadas, crianças choronas sentadas nos carrinhos como se fossem mercadorias, garotas coloridas de azul e branco voando nos ágeis patins, desafiando todas as leis da gravidade e do bom senso, fazendo manobras hábeis, contudo arriscadas.
Eu, lá no meio, navegando de proa contra a maré de mulheres, algumas violentas, maridos cabisbaixos pensando no tamanho da conta…
O tilintar das caixas vorazes digerindo o dinheiro, cheques, cartões de crédito, o ruído de sacos plásticos amassados, ranger de rodas em direção ao estacionamento.
Eu, lá dentro, olhando prateleiras, lendo etiquetas… Evitando colisões de frente, me agarrando à borda das gôndolas cheias, naquele mar bravio… Sacolejando em meio àquela tempestade de consumidores ferozes, enlouquecidos…
Pensava num assado de cordeiro ou numa boa peça de boi para o braseiro.
Mas, ao passar pelos salgados, me vi de cara com um bacalhau de dar gosto: um Porto de quase quatro dedos de lombo, uma beleza! Parei no caminho, desisti das carnes sem nem ter chegado ao balcão-frigorífico, e fiquei pensando naquele bacalhau feito à biscainha, do jeito que sei e gosto. Escolhi duas peças, três quilos e paulada, de carne alva e firme. Quis homenagear postumamente o velho Cirilo.
Então, fui em busca dos complementos: pimentão vermelho, verde e amarelo – mais para enfeite do que para o sabor, um visual colorido – batatas miúdas que serão cozidas com casca e, depois de peladas, comporão a gamela que vai ao forno; coentro fresco e cheiro verde são exigência de lei, cebola roxa, alho picado e frito no azeite. Falar nisso, vou em busca do azeite virgem com o qual inundarei o prato. Um verde que bem poderia ser uma couve passada de leve no azeite quente, as folhas inteiras, me passou pela cabeça. Achei as couves, folhas enormes e macias. Azeitonas pretas, enormes.
Estava abastecido.
Empurrei o carrinho disposto a enfrentar a fila de gente sequiosa por gastar dinheiro. Cadê a crise? Não vejo, a crise está noutros lugares, escondida, ou é uma ficção da mídia.
Sai de lá custosamente, depois de vencer uma troca de socos, cotoveladas, impropérios, rangido de dentes, numa rápida cena de “vias de fato” com uma legião de gordas iracundas e feias. Cena de pugilato, se me perdoam o chavão repisado.
Venci, melhor dizendo: sobrevivi, não facilmente, e consegui chegar ao estacionamento são e salvo, a despeito de alguns hematomas e demais ferimentos de pouca extensão.
Dali pra frente era só chegar em casa, pôr o peixe para dessalgar, trocar a água umas tantas e muitas vezes cuidando pra não ficar insípido, e esperar com paciência comprida o chegar do domingo.
Na minha pretensa “adega”, um buraco escuro sob a escada, onde pus um garrafeiro, havia um Periquita dormindo há tempos, esperando a hora de ser saboreado. É um tinto português mediano, leve, no limite, mas acho que suporta bem um bacalhau dessa qualidade.
Vem ele do Azeitão, aonde nunca fui e nem conheço, onde se come bacalhau de tudo que é jeito, e lá, ao que me consta, assim de ouvir falar, o Periquita não faz feio.