Eu já me preparava para levantar de meu banco, dando aquela última olhada panorâmica em volta quando ele aterrissou repentinamente na minha frente. Três pacotes de três tamanhos diferentes voaram alto e caíram em três lugares distintos. Ele não largou de sua mão, uma grande sacola. Arrastou-se com ela até perder o embalo da queda. Interessante observar como numa situação dessas, tanto a vítima quanto os transeuntes próximos, manifestam suas primeiras preocupações com os objetos. O gesto inicial de duas pessoas foi o de reunir os pacotes. A vítima levantou-se com alguma dificuldade e sua primeira preocupação foi com sua roupa. Bateu suas mãos nas calças e na camisa. Um pouco mais longe, algumas pessoas tentavam conter o riso. Eu, como cronista inveterado, anotei o episódio. Somente numa segunda etapa é que alguém perguntou se ele havia se machucado. Tudo estava bem, salvo um pequeno esfolado na mão que não quis largar aquela enorme sacola. Os pacotes foram empilhados no meu banco, as pessoas se afastaram, fazendo os comentários de praxe e a vítima sentou-se ao meu lado para tomar fôlego. Claro que sem largar sua misteriosa sacola.
– Tem certeza que está tudo bem? – perguntei para aliviar minha consciência, afinal minha solidariedade em sua desgraça momentânea se restringira a observar.
– Foi só um susto! Está tudo bem!
Enquanto falava observava a mão esfolada. Um esfolado superficial na pele endurecida por muito sol e trabalho. Pele resistente, acostumada a duros embates. Pele amorenada pelo tempo. Olhos claros. Cabelos loiros, ralos, mal cortados, despenteados. Um despenteado que certamente estava ali, antes da queda. Alguém de alguma etnia que chegou neste Brasil de Deus para plantar seus sonhos na terra em que plantando, tudo dá.
– Calçadas com buracos como esse aí, são perigosas. Principalmente para quem carrega pacotes. Será que não quebrou nada aí dentro? – Minha curiosidade infantil não resistiu. O que ele teria naquela misteriosa sacola?
– Não tem nada que possa quebrar.
– Ainda bem!
– O que me perturba – meditou ele – é que, quando alguém cai na rua é sempre um pobre. Quantas vezes você viu um rico cair? Será que rico não tropeça?
Esse polaco tem mais sabedoria que sorte, pensei com meus botões…
– Gostaria muito de ver um deles tropeçar aqui na minha frente! – Fui sincero… Queria mesmo!
– O bom seria ver quantos pacotes iriam voar! – Pela primeira vez desde o tombo ele esboçou um leve sorriso
– Ver a mulher de um ricaço, se esborrachando na calçada, deve ser bem mais divertido… -Coloquei mais lenha na fogueira…
– O divertido é ver a cara deles depois de um tombo desses. Eles têm um medo doentio do ridículo… Só que isso não acontece! O rico sempre tem um pobre pra cair no lugar dele…
– Nosso consolo é que já tem alguns levando tombos…
– O juiz? – Fez um ar de deboche e me encarou… – Nós nem sabemos se ele já chegou ao chão… O senhor vai me dar licença. Obrigado pelo apoio. Preciso ir embora.
– Um dia vamos democratizar o tombo também.
– Assim espero! Está difícil ficar caindo sozinho… – Novo e desdentado sorriso.
Levantou-se meio trôpego. Ajudei a empilhar os pacotes no braço esquerdo. Sua mão direita esfolada, que jamais largou a sacola, foi embora. Fiquei amargando minha curiosidade sem saber o que afinal tinha lá dentro. Descobri, porém, coisas mais importantes escondidas fora da intrigante sacola. Tem algo no ar além de nossa pretensiosa imaginação. Hoje vou para casa mais otimista. A consciência crítica se espalha por todas as classes sociais. Hoje já sabemos de nossos tropeços. Amanhã estaremos assistindo a chegada da democracia do tombo.